sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Astrakan 79: Entre a Memória e a Fábula

   “Astrakan 79” é uma valente e agradável surpresa! Ainda não se sabia nada sobre o que se passava para lá da cortina de ferro, a Guerra Fria fazia o seu caminho ao impedir-nos de tomar contacto com essa realidade e do que existia para lá do Muro de Berlim, por isso viajávamos e vivíamos a ideologia sem saber muitas coisas. Quase nada. Pobres jovens politizados! Havia também quem alimentasse o sonho duma sociedade perfeita proveniente do Leste Europeu e dos respetivos amanhãs que cantavam. Entretanto, chegavam as primeiras experiências dos que lá tinham estado, mas havia sempre também quem desvirtuasse o conteúdo das afirmações de quem lá tinha andado.Inclusive, alguém que afirmasse a pés juntos que a propaganda ocidental era mais forte do que aquela que era alimentada pelo bloco socialista. 
Ver “Astrakan 79” é ser surpreendido pela sua sinceridade, até pela sua vontade em ficcionar um acontecimento marcante de uma pessoa como o Martim Santa Rita. Este trabalho sobre uma viagem de há quarenta anos à URSS, aliás, como qualquer trabalhando documental, é a constatação e evidência que neste processo há sempre uma boa parte de construção e efabulação. Sim, sabendo nós que a memória é uma construção contínua, incapaz de ser imune a qualquer reabilitação de factos e narrativas, como poderemos nós acreditar em factos vividos há largas décadas? Vemos, assim, Martim recordar na actualidade, isto é, com 58 anos, o período em que esteve na União Soviética, cerca de ano e meio, com 15 anos de idade. Os pais, militantes do Partido Comunista, viram com bons olhos a partida de Martim para o reino dos sovietes, augurando um futuro radioso junto de uma sociedade dita segura, com a promessa do cumprimento dos nobres ideais de uma sociedade socialista avançada. Durante ano e meio, Martim viveu na sociedade soviética as dificuldades de assimilação de uma cultura diferente, com os problemas inerentes à sua juventude: as paixões, os amores, a rebeldia, tudo foi possível experimentar, inclusive, a clandestinidade e a rebeldia. O dito "fracasso" ficou guardado na memória este tempo todo.
Daí o momento fulcral na "compreensão" deste documentário é o encontro no final entre pai e filho, quatro décadas depois daquela viagem iniciática. O filho, Mateus Santa Rita, tocador do som do mais grave dos instrumentos de sopro - o fagote - agradece o gesto e continua o legado, sabendo nós que qualquer escolha que façamos nunca é em vão ou que continua a ser fácil. A Olaria e a Música que o digam!

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