“Astrakan
79”
é uma valente e agradável surpresa! Ainda não se sabia nada sobre o que se
passava para lá da cortina de ferro, a Guerra Fria fazia o seu caminho ao
impedir-nos de tomar contacto com essa realidade e do que existia para lá do Muro de Berlim, por isso viajávamos e vivíamos a ideologia sem saber muitas coisas. Quase nada. Pobres
jovens politizados! Havia também quem alimentasse o sonho duma sociedade
perfeita proveniente do Leste Europeu e dos respetivos amanhãs que cantavam.
Entretanto, chegavam as primeiras experiências dos que lá tinham estado, mas
havia sempre também quem desvirtuasse o conteúdo das afirmações de quem lá
tinha andado.Inclusive, alguém que afirmasse a pés juntos que a propaganda ocidental
era mais forte do que aquela que era alimentada pelo bloco socialista.
Ver
“Astrakan 79” é ser surpreendido pela sua sinceridade, até pela sua
vontade em ficcionar um acontecimento marcante de uma pessoa como o Martim
Santa Rita. Este trabalho sobre uma viagem de há quarenta anos à URSS, aliás, como qualquer trabalhando documental, é a constatação
e evidência que neste processo há sempre uma boa parte de construção e efabulação. Sim, sabendo nós que a memória é uma construção contínua,
incapaz de ser imune a qualquer reabilitação de factos e narrativas, como poderemos nós acreditar em factos
vividos há largas décadas? Vemos, assim, Martim recordar na actualidade, isto
é, com 58 anos, o período em que esteve na União Soviética, cerca de ano e
meio, com 15 anos de idade. Os pais, militantes do Partido Comunista, viram com
bons olhos a partida de Martim para o reino dos sovietes, augurando um futuro
radioso junto de uma sociedade dita segura, com a promessa do cumprimento dos nobres
ideais de uma sociedade socialista avançada. Durante ano e meio, Martim viveu
na sociedade soviética as dificuldades de assimilação de uma cultura diferente,
com os problemas inerentes à sua juventude: as paixões, os amores, a rebeldia, tudo
foi possível experimentar, inclusive, a clandestinidade e a rebeldia. O dito "fracasso" ficou guardado na memória este tempo todo.
Daí
o momento fulcral na "compreensão" deste documentário é o encontro no
final entre pai e filho, quatro décadas depois daquela viagem iniciática. O
filho, Mateus Santa Rita, tocador do som do mais grave dos instrumentos de
sopro - o fagote - agradece o gesto e continua o legado, sabendo nós que qualquer escolha
que façamos nunca é em vão ou que continua a ser fácil. A Olaria e a Música que
o digam!
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