Miguel M. é meu amigo por
natureza e é anarquista por profissão. Por mais brilharetes que as chefias
possam fazer, com ele nunca lucram nada. Se, por exemplo, chove, ele treme por
um bronzeador que o ponha sãozinho que um pêro e maduro como uma amora. Está
céu aberto e ei-lo a barafustar que as culturas vão ao ar, que os pássaros não
encontram charco onde molhem o bico, que os peixinhos vermelhos do tanque estão
aqui a afogar-se no lodo. Anarquista é o que ele diz ser. Por mim, chamo-lhe
espírito de contradição nas horas boas e varrido-de-todo quando vou ficando sem
paciência para o aturar. É claro que ele vai-se safando com desculpas de mau
pagador e cita parábolas e tiradas filosóficas que, no fim, acabam em nada. Mas
vai falando, o que não já não é nada mau. O que é mau é quando ele se arma em
defensor de causa alheia e atira para cá fora umas tantas bacoradas que vê-se
logo que não joga com os trunfos todos.
Pois é.
Aqui há anos andava Miguel M. de
manga arregaçada e língua em riste, desbaratando tudo e todos os que entendiam
que a agricultura dos Açores ou levava uma reviravolta ou os curraizinhos de
duas ou três vacas não chegariam para pagar o leite que o vitelinho – nené ia chupar nas primeiras duas semanas de vida.
“Uns comunas é o que eles são !” afogava-se o Miguel , no seu constante alarido
contra o emparcelamento de terrenos que
então se preconizava.“Uns grandessíssimos e alternadíssimos comunas, estes
gajos!”.
Hoje, Miguel M. já não fala
assim. Usa gravata, faz a barba e joga mais rasteiro. Hoje Miguel M. é um
fanático pela CEE, já vai ao futebol chamar filho-de-puta ao árbitro e entende, muito diplomaticamente, que o
tal “emparcelamento de terrenos” há anos
recomendado, é um maná que vem dos céus, é a chuva que vem saciar a terra
árida, é o sol que vem dourar os trigais.
Lírico, anarquista, maluco e
azarento, este Miguel. Os agricultores que nunca vão às pescas, paradoxalmente
querem ensinar-lhe com quantos paus se faz uma canoa. Logo agora…
sexta-feira, 1 de março de 2013
Anarquistas
José Daniel Macide, Março de 1985, in Crónicas da Portugália
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013
Notas à Margem
(de rascunho para uma
carta)
Talvez um dia as armas voltem a ser beijos
talvez que as ilhas digam sim ao mar
e sem se transformar logo em peixes
digam o porque sim de dizer não…
e a maior vaga de azul da tempestade
nos leve em caravelas para a lua
finalmente subindo e não de rastos
in “Notas à Margem” de João
Paulo Esteves da Silva
segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013
Notas de um Diário
1.Um músico que queixa por outro
elemento da banda não arranjar tempo para ensaiar pelo motivo de encontrar
envolvido nas danças de Carnaval.
2.Um arquitecto desempregado que
diz que o inverno açoriano é muito difícil de viver e que o verão terceirense é
deveras espectacular.
3.A rapariga que nunca teve
necessidade de estudar para fora porque não gostava da escola e que mesmo assim
foi viajando em férias.
4.O jurista que diz à mesa do
café que se gasta mais em prisões do que na educação das pessoas e que a
preocupação destas sociedades é satisfazer o consumo dos seus cidadãos.
5.Do leitor de clássicos que se
espanta quando o grego antigo anuncia em livro de comédia ser proveniente de
Atenas, o país das belas trirremes.
6.O estudante que se desloca
diariamente ao aeroporto para tirar fotografias a aviões de transporte, de
combustível e de carga, e outros de cariz militar.
7.O historiador que escreve sobre
a tertúlia do café que era frequentado por intelectuais , artistas plásticos,
músicos, jornalistas e figuras típicas.
8-Um futuro fotógrafo paisagista
que ao fotografar a rocha basáltica com a inscrição “Belo Abismo” reconhece não
ter coragem para mergulhar nas águas com a temperatura do Inverno.
quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013
Mar Insular
Traduzo o sal pela palavra cerco
dinamito a canção ao vento
adormeço em cenário marinho
a vespertina emoção cresce
deduzo que é êxito e comédia
na chegada o surpreendente prémio
regra de sábio não ceder
requinte aprendizagem ensaiada
na rua do amor sem cliché
absoluto repouso em pranto oferecido
terça-feira, 12 de fevereiro de 2013
Nefelococígia
Entra nuvens e aves terrestres
o horizonte marítimo ilimitado
clássico ensejo desabrido
vogam corações leitores
a noite não finda é um recomeço
aguardam-se navios iluminados
náufragos de interminável apego
versos afogados em líquidos destinos
descanso etéreo do nocturno aviso
fim de farândola em leito descoberto
segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013
Caligrafia
Numa manhã de Fevereiro
Apaixonei-me pela tua caligrafia
Daí em diante fiquei a saber
Este é o mês em que se sofre menos
Vaga
Dentro da In Folio
Uma livraria que não é um
negócio, um lugar que mais parece uma loja de guloseimas e uma paixão pelos
livros inabalável. Aqui há silêncio, aqui há paz de espírito para absorver o
ritmo da leitura. Há livros que ganham novas propriedades com pessoas que gostam
de trabalhar o seu interior, a sua apresentação, a forma como se apresentam aos
leitores. Talvez seja esse o futuro, livros como objectos imaculados, talvez. É
maravilhoso saber que existe um lugar assim a meio do oceano atlântico.
domingo, 3 de fevereiro de 2013
Sossega, Puto, sossega!
![]() |
"O Miúdo e a Bicicleta", filme Jean Pierre e Luc Dardenne |
Há dias ficamos a saber que Cyril
(Thomas Doret), o actor do filme “O Miúdo e a Bicicleta”, andou com o seu
frenesim e agitação cicloturística pelo canal 2 da RTP (em qual é que poderia
ser?). Andou? Aos doze anos não se anda, corre-se, neste caso pedala-se e
muito, vai-se até ao fim do mundo, inquietamo-nos com os pés, desinstala-se o
medo, atiram-se pedras à boca e com o coração nas mãos e com a língua de fora,
ninguém mais nos segura até sabermos as razões, ou mesmo sem elas, somente para
que nos digam o porquê de nos terem abandonado. Porquê? Digam, por favor.
Podiam ao menos dar uma razão, uma explicação que seja, façam alguma coisa para
travar esta aflição. Estranhos, estes adultos. O que é que será que é preciso?
E, logo numa casa de acolhimento, porquê? E por isso vamos com ele até ao fim,
atentos ao que acontece, à espera que alguém desate o nó. E…lá está a câmara
frenética dos irmãos Dardenne sempre atrás dele e da sua camisa vermelha
(porque terá sido o vermelho a cor escolhida?). E lá vai ele, sempre ele, a
pedalar, como um pequeno cavalo ofegante na esperança de desatar aquele nó, ao
alcance do pai. E o certo é que não o desata. É que a explicação não vem, a
resposta não chega, mas há, entretanto, a almofada que Samantha (Cécile De
France) lhe estende à espera que corra tudo bem… apenas por enquanto, o valor
do sorriso e o colo de quem se coloca na pele do outro, e bem que podia ser
qualquer um de nós a tentar compreender, a exortar uma clarificação, a aspirar
por uma justificação. Sorte, portanto, haver esta Samantha, cabeleireira de
profissão, com um sorriso doce e maternal, disposta a passar com ele os
fins-de-semana, primeiro, e depois a travar o desassossego de Cyril quando a
corda rebenta e a estação de serviço quase explode…de raiva. É ela quem
consegue apaziguar tanta dor e revolta. Cyril vai ter que aprender a viver com
aquela nódoa no coração. É assim quando somos abandonados, à força das
circunstâncias ou intencionalmente. Não é fácil, mas vale a pena tentar. E por
isso é que nós agradecemos aquele passeio de bicicleta – belíssimo momento de
cinema! - com direito a lanche do “casal” bem já perto do final, pois, como nos
diz a Hanna Arendt, “nada nos introduz mais no universo vivo do que o amor”.
segunda-feira, 28 de janeiro de 2013
Mar
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.
Sophia de Mello Breyner Andresen
domingo, 27 de janeiro de 2013
Marafilia
DM: Desculpe-nos a interrogação, mas passamos junto do seu gabinete e tinha lá escrito:
“Aqui trabalha e vive Doutor Mara…fui para junto do mar!”. Passou-se alguma
coisa de grave, algum imprevisto, alguma situação menos clara, caríssimo Doutor
Mara?
Doutor Mara: Não creio. No entanto, aviso
que não sou pessoa de deixar bilhetes falsos ou pregar falsas partidas, sem
razão aparente. Vim para junto do mar, é um facto, como podem comprovar. Há
três dias que não paro de dar mergulhos no mar. Estamos no Inverno é certo, mas
se é para voltar ao mar como já ouvi pela boca das mais altas instâncias então
que voltemos em força. Sem medos nem quebrantos.
DM: Neste seu acto Doutor Mara
perscrutamos muito mais do que mergulhos, parecem-nos um gesto de protesto e de
afirmação de uma identidade que pode ser perdida?
Doutor Mara: Estamos neste momento numa
encruzilhada. É um pouco como aqueles momentos da vida em que decidimos se
havemos de partir ou ficar sem deixar nada para trás. Às vezes também tenho uma
visão idílica dos antigos habitantes desta terra e então imagino as ruas das
cidades cheias de gente e orgulhosos da sua cultura do mar e do campo, encho-me
de vaidade das profissões que valorizam as mãos, ouço-os cantar as canções
antigas de trabalho e a vestir fatos lindos ao domingo, mas depois não tenho em
mente de alguma vez termos sido felizes e pobres ao mesmo tempo. Meus amigos,
uma redundante certeza eu já tenho da minha parte: eu nunca abandonei o mar,
mas já deixei bolo-rei no prato.
DM: Inclusive soubemos de fonte
segura que já mergulhou com tubarões recentemente, é verdade?
Doutor Mara: Não tenho feito outra
coisa nesta vida, sabem disso. Gosto de os ver passar, analisar o seu
comportamento e perceber que nos temos que afastar se não quisermos que uma
parte de nós sucumba. É muito simpático analisar a forma como os tubarões
pequenos gostam de agradar aos tubarões de grande porte, manifestando a sua
dedicação em manobras e outras diversões, sendo muitos destes de uma lealdade
que faz impressão. Sabemos que a sua condição de predador deixa pouca margem de
manobra para afastar-se da costa mas seria bom tom que em conjunto pudéssemos encontrar reservas naturais só para este tipo de animais.
DM: Doutor Mara, vemos alguma
nostalgia ou saudade nas suas palavras, coisa que não é muito comum, não é
verdade?
DM: Os últimos tempos têm sido
profícuos quanto à discussão daquilo que Portugal e os portugueses poderiam ou
não fazer. É bom termos ganho consciência de que o país é a soma de todos os
seres individuais. A certeza de que seremos muito mais fortes juntos. As
democracias são por vezes injustas com as minorias, quando as maiorias são de
facto medíocres impedem que essa minoria possa ter um país melhor, de tentar
alcançar um bem-estar colectivo. É difícil combater este dom sebastianismo de
séculos, que se manifesta nesta aceitação de figuras providenciais e salvíficas.
Não tarda nada estão a meter-nos a mão no bolso. Costuma-se dizer que temos
aquilo que merecemos.
DM: O diagnóstico já foi feito há
muito tempo e só nos impede de juntar forças e agir. Doutor Mara, Estaremos já
num beco sem saída?
Doutor Mara: Sim, é verdade, foi uma
espécie de aragem que que entrou e que parece demorar a sair, acontece sempre
isto com gente com mais olhos do que bucho e uma necessidade maior de parecer
do que ser naquilo que seria esperado. Não sabemos o que virá a seguir mas
certamente já não voltaremos ao ponto de partida.
DM: Talvez agora nos possa
responder ou explicar por que é que quando lhe perguntamos na entrada do novo
ano o que desejaria para este ano mergulhou numa resposta inusitada,
respondendo: “um barco e uma flor”. Alguma resposta na manga?
Doutor Mara: Sabem, por diversas vezes
quis abandonar este país, por desalento, por ver que as coisas não funcionam
como deviam funcionar, até por falta de oportunidades, ou por sonhos de outra
vida imaginados noutros lugares, quase sempre associados a “paraísos” de silêncio
e algum anonimato. O que é verdade é que, muito embora tenha vivido várias
vezes no estrangeiro, nunca abandonei definitivamente este país. Nunca. A
pergunta será: é o mar ou é este país que me custa abandonar?
DM: E se for o mar?
Doutor Mara: Se for o mar precisarei de
um barco…posso sempre partir e regressar. Há sempre rota de partida e de
regresso.
DM: E a flor, Doutor Mara,
diga-nos, o que é que isso significa?
Doutor Mara: A flor significa a
esperança, e esperança no país, obviamente. A esperança de que um país é um
lugar para se amar e cuidar…por isso precisamos que a flor germine. Para isso é
necessário terra, água, semente e tempo. Quem está disposto a abrir o primeiro
sulco no chão?
DM: Estamos em suspenso, Doutor
Mara, estamos em suspenso. Muito gostaríamos de ter uma resposta para lhe dar.
sábado, 26 de janeiro de 2013
Portugal
Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir como se tivesse
oitocentos
Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os infiéis ao norte de
África
só porque não podia combater a doença que lhe atacava os órgãos genitais
e nunca mais voltasse
Quase chego a pensar que é tudo uma mentira
que o Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney
e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente
Portugal
Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional
(que os meus egrégios avós me perdoem)
Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo
Anda na consulta externa do Júlio de Matos
Deram-lhe uns electro-choques e está a recuperar
àparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera um futuro de
rosas
Portugal
Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos a ver se contraía a febre do
Império
mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado
Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr uma pérola que fosse
das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador
Portugal
Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
Sabes
Estou loucamente apaixonado por ti
Pergunto a mim mesmo
Como me pude apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu
mas que tem o coração doce ainda mais doce que os pastéis de Tentúgal
e o corpo cheio de pontos negros para poder espremer à minha vontade
Portugal estás a ouvir-me?
Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete Salazar estava no poder nada
de ressentimentos
um dia bebi vinagre nada de ressentimentos
Portugal
Sabes de que cor são os meus olhos?
São castanhos como os da minha mãe
Portugal
gostava de te beijar muito apaixonadamente
na boca
Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os infiéis ao norte de
África
só porque não podia combater a doença que lhe atacava os órgãos genitais
e nunca mais voltasse
Quase chego a pensar que é tudo uma mentira
que o Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney
e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente
Portugal
Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional
(que os meus egrégios avós me perdoem)
Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo
Anda na consulta externa do Júlio de Matos
Deram-lhe uns electro-choques e está a recuperar
àparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera um futuro de
rosas
Portugal
Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos a ver se contraía a febre do
Império
mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado
Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr uma pérola que fosse
das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador
Portugal
Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
Sabes
Estou loucamente apaixonado por ti
Pergunto a mim mesmo
Como me pude apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu
mas que tem o coração doce ainda mais doce que os pastéis de Tentúgal
e o corpo cheio de pontos negros para poder espremer à minha vontade
Portugal estás a ouvir-me?
Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete Salazar estava no poder nada
de ressentimentos
um dia bebi vinagre nada de ressentimentos
Portugal
Sabes de que cor são os meus olhos?
São castanhos como os da minha mãe
Portugal
gostava de te beijar muito apaixonadamente
na boca
Jorge Sousa Braga
quinta-feira, 24 de janeiro de 2013
Ginecomagia
DM: Era um domingo como outro qualquer, sem absolutamente nada para contar, caso não tivéssemos sido surpreendidos por uma visão implacável: a presença do Doutor Mara num banco de jardim rodeado de material literário como é seu hábito, ainda que com algumas surpresas que, imediatamente, quisemos indagar.
DM: Doutor Mara, ao fim de algum tempo, afinal do que tem saudades?
Doutor Mara: Dos meus anos vividos em Estocolmo, na minha fria e amada Suécia. O anonimato na rua sabia-me bem. E, como era bom ir beber uma meia de leite ao café String, fica em Söderlmalm, sentar-me onde se sentava o Jan Johansson, imaginá-lo ali com as suas pautas retiradas da sua pasta preta com um desenho de uma clave de sol e ficar a ver os flocos de neve cair. Estava-se melhor no interior daquele café do que em algumas casas portuguesas. No Inverno, claro.
DM: Já viveu, portanto, em outros países?
DM: Sim, garantidamente, enquanto experiências existenciais de longo alcance, foram pelo menos quatro. O resto foram passagens e paisagens de circunstâncias. Sempre por razões afectivas e românticas, que talvez faça, um dia, o trabalho de descortinar tamanhos périplos efectuados, o que não é fácil.
DM: Doutor Mara, temos hoje para si uma pergunta complicada, pois corre nos tugúrios menos asseados da nossa cidade, rumores de uma hipotética homossexualidade da sua parte.
Doutor Mara: Nada contra, aceito os rumores e, obviamente, a homossexualidade. Houve tempos que, num programa de rádio denominado "Campos de Naftalina", li de forma caótica e irónica um conto intitulado de "O Nariz", pertencente ao escritor russo Nicolas Gógol, um conto extraordinário sobre alguém que acorda sem nariz. Felizmente para nós, o nariz é um produto tipicamente português e que bem poderia ajudar a estabilizar a nossa balança comercial, caso decidíssemos exportar o tamanho do nossos narizes de uma só vez para quem estivesse interessado nas suas respectivas compras e aquisições. O slogan podia ser: "Vende-se o meu nariz, vai do Pessegueiro até Paris". E, nestes dias em que vejo que o nariz tem inoportunas funções, lembro-me sempre do Alexandre O´Neill, quando este um dia ironizou: "Não metas o nariz na vida dos outros, pois podes lá ficar". E, porventura, é verdade.
DM: Doutor Mara, mas…há alguma ponta de verdade no que se ventila por aí?
Doutor Mara: A cada um a sua ventilação, já dizia o filósofo das barbas brancas que os nossos irmãos espanhóis “espanholaram” com o nome de Carlos Marx. Seria plausível ou com uma boa ponta de verdade caso eu tivesse alguma relação com alguém do sexo masculino, o que não se verifica. De qualquer modo, não vejo que isso ainda possa ser apelidado de rumor. A sexualidade de cada um devia pertencer única e exclusivamente a cada um.
DM: O que seria de todo verdade caso o Doutor Mara fosse apenas um cidadão comum, o que não nos parece, dado o seu estatuto de personalidade pública, não é verdade?
Doutor Mara: Como eu vos compreendo, caros amigos. Estes meus velhos hábitos de anacoreta deram sempre origem a esse tipo de efabulações. Depois, creio que começo lentamente a tornar-me politicamente incómodo com os meus estudos e intervenções de longo alcance sociológico. Julgo ter uma reputação imaculada, mas nunca se sabe o que as más línguas serão capazes de inventar. A acreditar naquela máxima de que quando um escândalo desponta e se espalha há sempre um fundo de verdade, qualquer dia ainda me acusam do síndrome de sotaque estrangeiro. Não é assim?
DM: Compreendemos, Doutor Mara. No entanto, junto do seu banco do jardim, vemos que tem consigo uma revista Playboy. Sem querer invadir a sua privacidade, diga-nos, qual é a sua situação civil actualmente?
Doutor Mara: Mas isso interessa actualmente para alguma coisa?
DM: Pois, não é nossa intenção pretender fazer psicanálise, mas o que faz Doutor Mara com uma revista desse calibre?
Doutor Mara: Este material de fino recorte e curvas perfeitas, diga-se, deve ter sido deixado aqui por algum leitor furtivo. Paz à sua alma. Longe de mim a castidade, meus amigos, mas também não gostaria de passar a imagem de um pervertido sexual de domingo à tarde. É certo que não pretendem fazer psicanálise, nem relembrar os meus tempos de libertinagem na juventude mas confesso que, por vezes, me deixo surpreender pelas malhas eufóricas da erotização do real. A sociedade em que vivemos é profundamente erotizada e o desejo mecanizado. Posso afirmar que o sexo tornou-se de plástico e o amor é para românticos. Julgo que tem a ver com as máquinas que nos rodeiam, disparam conteúdos de cariz erótico sensual como as galinhas depositam ovos nos aviários.
DM: Agora que esperamos a Primavera, perdoe-nos, no entanto, o atrevimento. Como era o Doutor Mara nas Primaveras da sua juventude. Sentia, à semelhança dos seus contemporâneos, o seu corpo vibrar em comunhão com a natureza, em harmonia total, o tal desabrochar dos tecidos?
Doutor Mara: Evidentemente que sim. Recordo-me de no tempo do liceu ter desenvolvido uma paixão platónica pela Professora Emília, que leccionava a disciplina de História. Lembro-me lhe ter dito no dia inicial da estação primaveril, semelhante introdução camoniana: “Transforma-se o amador na cousa amada/ Por virtude do muito imaginar/ Não tenho logo mais que desejar/ Pois em mim tenho a parte desejada.” Ela avisou o Director de Turma que eu não estava bem. Passei o verão a auxiliar um vizinho que era mecânico de barcos como castigo. Aprendi muito nesses dias de óleo, chave 24 e motores de quatro tempos. Acontece aos melhores.
DM: Soubemos que tem uma enorme admiração pelo universo feminino e que um dos seus sonhos era ser um insecto e poder um dia entrar numa casa de banho feminina ou num táxi só com mulheres, inclusive a taxista.
Doutor Mara: Não chegaria a tanto, não exageremos. É um facto que tenho muita, para não dizer uma total curiosidade sobre o universo feminino em local tão íntimo. Há qualquer coisa de erótico nessas reuniões alargadas. Desconfia-se que é uma conspiração de Eros e que faz com que todas elas se sintam, subitamente, objectos do desejo masculino. Aqueles pequenos gritos de prazer – se forem realmente sinceros - de várias mulheres em locais desprovidos de homens são profundamente atraentes. Lembro-me de um realizador de cinema brasileiro, citando outro realizador, ter dito que os homens realizam acções em função de três objectivos: as palmas do público, o tilintar das moedas e o gemido das mulheres. Nem sempre por esta ordem de ideias, o que torna o homem muito objectivo na sua sedução. Não concordam?
DM: É possível, Doutor Mara, é possível.Quer contar-nos como se tornou Homem pela primeira vez?
Doutor Mara: Sim, foi inesquecível e trágico ao mesmo tempo. Foi num acampamento de jovens anti-militaristas com uma jovem esquerdista-libertária, filha de um ex-oficial do Ultramar. O pai apareceu pela manhã sem ninguém contar e abriu o fecho da tenda, obrigando-me a sair e a fazer quatrocentas flexões de uma assentada, a chamada GM (Ginástica Militar). Para mim, o acampamento anti-militarista terminou ali. Ela teve que trabalhar nesse verão e foi proibida de voltar a falar comigo, o que ela acedeu. Encontrei-a alguns anos mais tarde numa arruada de um partido da direita conservadora, com um cheiro a perfume de rosas e uma mala Channel. Questionou a minha relação com as drogas recreativas e desejou-me sucessos para minha vida futura. Virei costas, apertei os atilhos dos sapatos e fui comer umas iscas ao “Zé Manel dos Ossos”.
DM: Doutor Mara, sinceramente, acredita na fidelidade?
Doutor Mara: Tenho um velho amigo que após muitos anos a “olhar os lírios do campo” se dedicou à família e aos seus cinco filhos. Os resultados foram surpreendentes. Hoje consegue ser mais fiel que o Pluto, o seu cão de estimação. Um amigo da minha de infância passada junto do mar, recém-regressado da Islândia, onde fez o doutoramento em Espeleologia e Minerologia, confessou-me a este propósito que tudo vai bem desde que não se saiba. Ora bem, a fidelidade é um prato de duas bocas, como eu costumo dizer. Só come quem quer! Por isso prefiro a exaltação da lealdade, isto é, ser fiel a um compromisso, a uma verdade partilhada. Será que aceitam esta resposta?
DM: Claro que sim, Doutor Mara. Foi mais uma vez um enorme prazer falar consigo.
PANAZOREAN na Ilha Terceira
![]() |
“Die Fremde” de Feo Aladag. |
Duas noites de cinema dedicado ao diálogo intercultural no Centro Cultural de Congressos de Angra do Heroísmo numa extensão do Festival Panazorean, evento com sede em São Miguel, e que se realizou durante mês de Abril do ano passado em Ponta Delgada. Belíssima e arrojada iniciativa pautada pela exibição na terça-feira, dia 22, pelos filmes “50 Pesos Argentinos”, “Down in Egyptland” de Lukas Zund e “Mazagão, a Água que Volta” de Ricardo Leite e, na noite de quarta-feira, dia 23, pela exibição dos filmes “PDL- LIS" de Diogo Lima e “Die Fremde” de Feo Aladag.
As sessões sempre bem compostas de público e com os filmes a surpreenderem pela positiva.“50 Pesos Argentinos”, prémio do público, melhor filme regional, é um interessante exercício sobre os açorianos que partiram em busca do “el dorado” em terras argentinas e sobre aqueles que no arquipélago permaneceram à míngua das suas expectativas e anseios por não terem partido. “Down in Egyptland, prémio RTP2/Onda Curta, é um objecto cinematográfico bem conduzido, com uma excelente fotografia e uma ainda melhor banda sonora, precisava somente de melhores soluções narrativas. Quanto “Mazagão, a Água que Volta” estamos perante um trabalho arrojado, valoroso enquanto documento mas algo extenso e a necessitar rever alguma consistência nos conteúdos apresentados. Na segunda noite, a atenção recaiu no filme “Die Fremde”, prémio melhor filme internacional, e que é uma auspiciosa e entusiasmante primeira obra de Feo Aladag. O filme gira em volta de Umay, uma jovem turco-alemã que fugindo de um casamento infeliz em Instambul, parte para Berlim onde os seus pais residem, procurando aí a sua emancipação. Tudo seria perfeito caso não existisse esse código de honra tradicional que faz com que “Umay” seja também ela uma estrangeira para os valores da sua própria família. O filme é magistralmente acompanhado pelo piano de Max Richter e as composições de Stéphane Moucha. Os últimos cinco minutos do filme são deveras comoventes e reveladores do melhor que ainda está para vir desta cineasta austríaca.
Uma última nota apenas para referir que as sessões eram gratuitas e que no início das mesmas foi oferecido o livro “Diagnóstico da população Imigrante no Concelho de Ponta Delgada-Desafios e Potencialidades para o Desenvolvimento Local” da organização AIPA- Associação dos Imigrantes dos Açores. Parabéns e votos renovados de estímulo e incentivo mais do que merecidos aos organizadores desta iniciativa de enorme valor.
Uma última nota apenas para referir que as sessões eram gratuitas e que no início das mesmas foi oferecido o livro “Diagnóstico da população Imigrante no Concelho de Ponta Delgada-Desafios e Potencialidades para o Desenvolvimento Local” da organização AIPA- Associação dos Imigrantes dos Açores. Parabéns e votos renovados de estímulo e incentivo mais do que merecidos aos organizadores desta iniciativa de enorme valor.
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