sexta-feira, 1 de março de 2013

Anarquistas

          Miguel M. é meu amigo por natureza e é anarquista por profissão. Por mais brilharetes que as chefias possam fazer, com ele nunca lucram nada. Se, por exemplo, chove, ele treme por um bronzeador que o ponha sãozinho que um pêro e maduro como uma amora. Está céu aberto e ei-lo a barafustar que as culturas vão ao ar, que os pássaros não encontram charco onde molhem o bico, que os peixinhos vermelhos do tanque estão aqui a afogar-se no lodo. Anarquista é o que ele diz ser. Por mim, chamo-lhe espírito de contradição nas horas boas e varrido-de-todo quando vou ficando sem paciência para o aturar. É claro que ele vai-se safando com desculpas de mau pagador e cita parábolas e tiradas filosóficas que, no fim, acabam em nada. Mas vai falando, o que não já não é nada mau. O que é mau é quando ele se arma em defensor de causa alheia e atira para cá fora umas tantas bacoradas que vê-se logo que não joga com os trunfos todos.
Pois é.
       Aqui há anos andava Miguel M. de manga arregaçada e língua em riste, desbaratando tudo e todos os que entendiam que a agricultura dos Açores ou levava uma reviravolta ou os curraizinhos de duas ou três vacas não chegariam para pagar o leite que o vitelinho – nené  ia chupar nas primeiras duas semanas de vida. “Uns comunas é o que eles são !” afogava-se o Miguel , no seu constante alarido contra o emparcelamento de terrenos que então se preconizava.“Uns grandessíssimos e alternadíssimos comunas, estes gajos!”.
         Hoje, Miguel M. já não fala assim. Usa gravata, faz a barba e joga mais rasteiro. Hoje Miguel M. é um fanático pela CEE, já vai ao futebol chamar filho-de-puta ao árbitro e entende, muito diplomaticamente, que o tal “emparcelamento de terrenos” há anos recomendado, é um maná que vem dos céus, é a chuva que vem saciar a terra árida, é o sol que vem dourar os trigais.
Lírico, anarquista, maluco e azarento, este Miguel. Os agricultores que nunca vão às pescas, paradoxalmente querem ensinar-lhe com quantos paus se faz uma canoa. Logo agora…


José Daniel MacideMarço de 1985, in Crónicas da Portugália

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Notas à Margem


(de rascunho para uma carta)
Talvez um dia as armas voltem a ser beijos
talvez que as ilhas digam sim ao mar
e sem se transformar logo em peixes
digam o porque sim de dizer não…
e a maior vaga de azul da tempestade
nos leve em caravelas para a lua
finalmente subindo e não de rastos

inNotas à Margem” de João Paulo Esteves da Silva

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Notas de um Diário

1.Um músico que queixa por outro elemento da banda não arranjar tempo para ensaiar pelo motivo de encontrar envolvido nas danças de Carnaval.
2.Um arquitecto desempregado que diz que o inverno açoriano é muito difícil de viver e que o verão terceirense é deveras espectacular.
3.A rapariga que nunca teve necessidade de estudar para fora porque não gostava da escola e que mesmo assim foi viajando em férias.
4.O jurista que diz à mesa do café que se gasta mais em prisões do que na educação das pessoas e que a preocupação destas sociedades é satisfazer o consumo dos seus cidadãos.
5.Do leitor de clássicos que se espanta quando o grego antigo anuncia em livro de comédia ser proveniente de Atenas, o país das belas trirremes.
6.O estudante que se desloca diariamente ao aeroporto para tirar fotografias a aviões de transporte, de combustível e de carga, e outros de cariz militar.
7.O historiador que escreve sobre a tertúlia do café que era frequentado por intelectuais , artistas plásticos, músicos, jornalistas e figuras típicas.
8-Um futuro fotógrafo paisagista que ao fotografar a rocha basáltica com a inscrição “Belo Abismo” reconhece não ter coragem para mergulhar nas águas com a temperatura do Inverno.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Mar Insular



Traduzo o sal pela palavra cerco
dinamito a canção ao vento
adormeço em cenário marinho
a vespertina emoção cresce
deduzo que é êxito e comédia
na chegada o surpreendente prémio
regra de sábio não ceder
requinte aprendizagem ensaiada
na rua do amor sem cliché
absoluto repouso em pranto oferecido 

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Nefelococígia


Entra nuvens e aves terrestres
o horizonte marítimo ilimitado
clássico ensejo desabrido
vogam corações leitores
a noite não finda é um recomeço
aguardam-se navios iluminados
náufragos de interminável apego
versos afogados em líquidos destinos
descanso etéreo do nocturno aviso
fim de farândola em leito descoberto

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Caligrafia

Numa manhã de Fevereiro
Apaixonei-me pela tua caligrafia
Daí em diante fiquei a saber
Este é o mês em que se sofre menos


                     

Vaga

Fotografia de Eduardo Brito


Por vontade das correntes
Acato as tuas inquietações
Não aceitando que me troques
Pelo redemoínho das areias

Este é um desejo em escalada
Rasgando a onda escalando a vaga
À força de tudo querer
O espelho de um corpo em toda a água

Dentro da In Folio

        Uma livraria que não é um negócio, um lugar que mais parece uma loja de guloseimas e uma paixão pelos livros inabalável. Aqui há silêncio, aqui há paz de espírito para absorver o ritmo da leitura. Há livros que ganham novas propriedades com pessoas que gostam de trabalhar o seu interior, a sua apresentação, a forma como se apresentam aos leitores. Talvez seja esse o futuro, livros como objectos imaculados, talvez. É maravilhoso saber que existe um lugar assim a meio do oceano atlântico.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Sossega, Puto, sossega!

"O Miúdo e a Bicicleta", filme Jean Pierre e Luc Dardenne

Há dias ficamos a saber que Cyril (Thomas Doret), o actor do filme “O Miúdo e a Bicicleta”, andou com o seu frenesim e agitação cicloturística pelo canal 2 da RTP (em qual é que poderia ser?). Andou? Aos doze anos não se anda, corre-se, neste caso pedala-se e muito, vai-se até ao fim do mundo, inquietamo-nos com os pés, desinstala-se o medo, atiram-se pedras à boca e com o coração nas mãos e com a língua de fora, ninguém mais nos segura até sabermos as razões, ou mesmo sem elas, somente para que nos digam o porquê de nos terem abandonado. Porquê? Digam, por favor. Podiam ao menos dar uma razão, uma explicação que seja, façam alguma coisa para travar esta aflição. Estranhos, estes adultos. O que é que será que é preciso? E, logo numa casa de acolhimento, porquê? E por isso vamos com ele até ao fim, atentos ao que acontece, à espera que alguém desate o nó. E…lá está a câmara frenética dos irmãos Dardenne sempre atrás dele e da sua camisa vermelha (porque terá sido o vermelho a cor escolhida?). E lá vai ele, sempre ele, a pedalar, como um pequeno cavalo ofegante na esperança de desatar aquele nó, ao alcance do pai. E o certo é que não o desata. É que a explicação não vem, a resposta não chega, mas há, entretanto, a almofada que Samantha (Cécile De France) lhe estende à espera que corra tudo bem… apenas por enquanto, o valor do sorriso e o colo de quem se coloca na pele do outro, e bem que podia ser qualquer um de nós a tentar compreender, a exortar uma clarificação, a aspirar por uma justificação. Sorte, portanto, haver esta Samantha, cabeleireira de profissão, com um sorriso doce e maternal, disposta a passar com ele os fins-de-semana, primeiro, e depois a travar o desassossego de Cyril quando a corda rebenta e a estação de serviço quase explode…de raiva. É ela quem consegue apaziguar tanta dor e revolta. Cyril vai ter que aprender a viver com aquela nódoa no coração. É assim quando somos abandonados, à força das circunstâncias ou intencionalmente. Não é fácil, mas vale a pena tentar. E por isso é que nós agradecemos aquele passeio de bicicleta – belíssimo momento de cinema! - com direito a lanche do “casal” bem já perto do final, pois, como nos diz a Hanna Arendt, “nada nos introduz mais no universo vivo do que o amor”.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Mar

De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua

Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 27 de janeiro de 2013

Marafilia


DM: Desculpe-nos a interrogação, mas passamos junto do seu gabinete e tinha lá escrito: “Aqui trabalha e vive Doutor Mara…fui para junto do mar!”. Passou-se alguma coisa de grave, algum imprevisto, alguma situação menos clara, caríssimo Doutor Mara?
Doutor Mara: Não creio. No entanto, aviso que não sou pessoa de deixar bilhetes falsos ou pregar falsas partidas, sem razão aparente. Vim para junto do mar, é um facto, como podem comprovar. Há três dias que não paro de dar mergulhos no mar. Estamos no Inverno é certo, mas se é para voltar ao mar como já ouvi pela boca das mais altas instâncias então que voltemos em força. Sem medos nem quebrantos.

DM: Neste seu acto Doutor Mara perscrutamos muito mais do que mergulhos, parecem-nos um gesto de protesto e de afirmação de uma identidade que pode ser perdida?
Doutor Mara: Estamos neste momento numa encruzilhada. É um pouco como aqueles momentos da vida em que decidimos se havemos de partir ou ficar sem deixar nada para trás. Às vezes também tenho uma visão idílica dos antigos habitantes desta terra e então imagino as ruas das cidades cheias de gente e orgulhosos da sua cultura do mar e do campo, encho-me de vaidade das profissões que valorizam as mãos, ouço-os cantar as canções antigas de trabalho e a vestir fatos lindos ao domingo, mas depois não tenho em mente de alguma vez termos sido felizes e pobres ao mesmo tempo. Meus amigos, uma redundante certeza eu já tenho da minha parte: eu nunca abandonei o mar, mas já deixei bolo-rei no prato.

DM: Inclusive soubemos de fonte segura que já mergulhou com tubarões recentemente, é verdade?
Doutor Mara: Não tenho feito outra coisa nesta vida, sabem disso. Gosto de os ver passar, analisar o seu comportamento e perceber que nos temos que afastar se não quisermos que uma parte de nós sucumba. É muito simpático analisar a forma como os tubarões pequenos gostam de agradar aos tubarões de grande porte, manifestando a sua dedicação em manobras e outras diversões, sendo muitos destes de uma lealdade que faz impressão. Sabemos que a sua condição de predador deixa pouca margem de manobra para afastar-se da costa mas seria bom tom que em conjunto pudéssemos encontrar reservas naturais só para este tipo de animais.  

DM: Doutor Mara, vemos alguma nostalgia ou saudade nas suas palavras, coisa que não é muito comum, não é verdade?
DM: Os últimos tempos têm sido profícuos quanto à discussão daquilo que Portugal e os portugueses poderiam ou não fazer. É bom termos ganho consciência de que o país é a soma de todos os seres individuais. A certeza de que seremos muito mais fortes juntos. As democracias são por vezes injustas com as minorias, quando as maiorias são de facto medíocres impedem que essa minoria possa ter um país melhor, de tentar alcançar um bem-estar colectivo. É difícil combater este dom sebastianismo de séculos, que se manifesta nesta aceitação de figuras providenciais e salvíficas. Não tarda nada estão a meter-nos a mão no bolso. Costuma-se dizer que temos aquilo que merecemos.

DM: O diagnóstico já foi feito há muito tempo e só nos impede de juntar forças e agir. Doutor Mara, Estaremos já num beco sem saída?
Doutor Mara: Sim, é verdade, foi uma espécie de aragem que que entrou e que parece demorar a sair, acontece sempre isto com gente com mais olhos do que bucho e uma necessidade maior de parecer do que ser naquilo que seria esperado. Não sabemos o que virá a seguir mas certamente já não voltaremos ao ponto de partida.

DM: Talvez agora nos possa responder ou explicar por que é que quando lhe perguntamos na entrada do novo ano o que desejaria para este ano mergulhou numa resposta inusitada, respondendo: “um barco e uma flor”. Alguma resposta na manga?
Doutor Mara: Sabem, por diversas vezes quis abandonar este país, por desalento, por ver que as coisas não funcionam como deviam funcionar, até por falta de oportunidades, ou por sonhos de outra vida imaginados noutros lugares, quase sempre associados a “paraísos” de silêncio e algum anonimato. O que é verdade é que, muito embora tenha vivido várias vezes no estrangeiro, nunca abandonei definitivamente este país. Nunca. A pergunta será: é o mar ou é este país que me custa abandonar?

DM: E se for o mar?
Doutor Mara: Se for o mar precisarei de um barco…posso sempre partir e regressar. Há sempre rota de partida e de regresso.  

DM: E a flor, Doutor Mara, diga-nos, o que é que isso significa?
Doutor Mara: A flor significa a esperança, e esperança no país, obviamente. A esperança de que um país é um lugar para se amar e cuidar…por isso precisamos que a flor germine. Para isso é necessário terra, água, semente e tempo. Quem está disposto a abrir o primeiro sulco no chão?
DM: Estamos em suspenso, Doutor Mara, estamos em suspenso. Muito gostaríamos de ter uma resposta para lhe dar.

sábado, 26 de janeiro de 2013

Portugal

Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir como se tivesse
oitocentos
Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os infiéis ao norte de
África
só porque não podia combater a doença que lhe atacava os órgãos genitais
e nunca mais voltasse
Quase chego a pensar que é tudo uma mentira
que o Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney
e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente
Portugal
Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional
(que os meus egrégios avós me perdoem)
Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo
Anda na consulta externa do Júlio de Matos
Deram-lhe uns electro-choques e está a recuperar
àparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera um futuro de
rosas
Portugal
Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos a ver se contraía a febre do
Império
mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado
Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr uma pérola que fosse
das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador
Portugal
Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
Sabes
Estou loucamente apaixonado por ti
Pergunto a mim mesmo
Como me pude apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu
mas que tem o coração doce ainda mais doce que os pastéis de Tentúgal
e o corpo cheio de pontos negros para poder espremer à minha vontade
Portugal estás a ouvir-me?
Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete Salazar estava no poder nada
de ressentimentos
um dia bebi vinagre nada de ressentimentos
Portugal
Sabes de que cor são os meus olhos?
São castanhos como os da minha mãe
Portugal
gostava de te beijar muito apaixonadamente
na boca

Jorge Sousa Braga

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Ginecomagia

DM: Era um domingo como outro qualquer, sem absolutamente nada para contar, caso não tivéssemos sido surpreendidos por uma visão implacável: a presença do Doutor Mara num banco de jardim rodeado de material literário como é seu hábito, ainda que com algumas surpresas que, imediatamente, quisemos indagar.

DM: Doutor Mara, ao fim de algum tempo, afinal do que tem saudades?
Doutor Mara: Dos meus anos vividos em Estocolmo, na minha fria e amada Suécia. O anonimato na rua sabia-me bem. E, como era bom ir beber uma meia de leite ao café String, fica em Söderlmalm, sentar-me onde se sentava o Jan Johansson, imaginá-lo ali com as suas pautas retiradas da sua pasta preta com um desenho de uma clave de sol e ficar a ver os flocos de neve cair. Estava-se melhor no interior daquele café do que em algumas casas portuguesas. No Inverno, claro.

DM: Já viveu, portanto, em outros países?
DM: Sim, garantidamente, enquanto experiências existenciais de longo alcance, foram pelo menos quatro. O resto foram passagens e paisagens de circunstâncias. Sempre por razões afectivas e românticas, que talvez faça, um dia, o trabalho de descortinar tamanhos périplos efectuados, o que não é fácil.

DM: Doutor Mara, temos hoje para si uma pergunta complicada, pois corre nos tugúrios menos asseados da nossa cidade, rumores de uma hipotética homossexualidade da sua parte.
Doutor Mara: Nada contra, aceito os rumores e, obviamente, a homossexualidade. Houve tempos que, num programa de rádio denominado "Campos de Naftalina", li de forma caótica e irónica um conto intitulado de "O Nariz", pertencente ao escritor russo Nicolas Gógol, um conto extraordinário sobre alguém que acorda sem nariz. Felizmente para nós, o nariz é um produto tipicamente português e que bem poderia ajudar a estabilizar a nossa balança comercial, caso decidíssemos exportar o tamanho do nossos narizes de uma só vez para quem estivesse interessado nas suas respectivas compras e aquisições. O slogan podia ser: "Vende-se o meu nariz, vai do Pessegueiro até Paris". E, nestes dias em que vejo que o nariz tem inoportunas funções,  lembro-me sempre do Alexandre O´Neill, quando este um dia ironizou: "Não metas o nariz na vida dos outros, pois podes lá ficar". E, porventura, é verdade.

DM: Doutor Mara, mas…há alguma ponta de verdade no que se ventila por aí?
Doutor Mara: A cada um a sua ventilação, já dizia o filósofo das barbas brancas que os nossos irmãos espanhóis “espanholaram” com o nome de Carlos Marx. Seria plausível ou com uma boa ponta de verdade caso eu tivesse alguma relação com alguém do sexo masculino, o que não se verifica. De qualquer modo, não vejo que isso ainda possa ser apelidado de rumor. A sexualidade de cada um devia pertencer única e exclusivamente a cada um.

DM: O que seria de todo verdade caso o Doutor Mara fosse apenas um cidadão comum, o que não nos parece, dado o seu estatuto de personalidade pública, não é verdade?
Doutor Mara: Como eu vos compreendo, caros amigos. Estes meus velhos hábitos de anacoreta deram sempre origem a esse tipo de efabulações. Depois, creio que começo lentamente a tornar-me politicamente incómodo com os meus estudos e intervenções de longo alcance sociológico. Julgo ter uma reputação imaculada, mas nunca se sabe o que as más línguas serão capazes de inventar. A acreditar naquela máxima de que quando um escândalo desponta e se espalha há sempre um fundo de verdade, qualquer dia ainda me acusam do síndrome de sotaque estrangeiro. Não é assim?

DM: Compreendemos, Doutor Mara. No entanto, junto do seu banco do jardim, vemos que tem consigo uma revista Playboy. Sem querer invadir a sua privacidade, diga-nos, qual é a sua situação civil actualmente?
Doutor Mara: Mas isso interessa actualmente para alguma coisa?

DM: Pois, não é nossa intenção pretender fazer psicanálise, mas o que faz Doutor Mara com uma revista desse calibre?
Doutor Mara: Este material de fino recorte e curvas perfeitas, diga-se, deve ter sido deixado aqui por algum leitor furtivo. Paz à sua alma. Longe de mim a castidade, meus amigos, mas também não gostaria de passar a imagem de um pervertido sexual de domingo à tarde. É certo que não pretendem fazer psicanálise, nem relembrar os meus tempos de libertinagem na juventude mas confesso que, por vezes, me deixo surpreender pelas malhas eufóricas da erotização do real. A sociedade em que vivemos é profundamente erotizada e o desejo mecanizado. Posso afirmar que o sexo tornou-se de plástico e o amor é para românticos. Julgo que tem a ver com as máquinas que nos rodeiam, disparam conteúdos de cariz erótico sensual como as galinhas depositam ovos nos aviários.

DM: Agora que esperamos a Primavera, perdoe-nos, no entanto, o atrevimento. Como era o Doutor Mara nas Primaveras da sua juventude. Sentia, à semelhança dos seus contemporâneos, o seu corpo vibrar em comunhão com a natureza, em harmonia total, o tal desabrochar  dos tecidos?
Doutor Mara: Evidentemente que sim. Recordo-me de no tempo do liceu ter desenvolvido uma paixão platónica pela Professora Emília, que leccionava a disciplina de História. Lembro-me lhe ter dito no dia inicial da estação primaveril, semelhante introdução camoniana: “Transforma-se o amador na cousa amada/ Por virtude do muito imaginar/ Não tenho logo mais que desejar/ Pois em mim tenho a parte desejada.” Ela avisou o Director de Turma que eu não estava bem. Passei o verão a auxiliar um vizinho que era mecânico de barcos como castigo. Aprendi muito nesses dias de óleo, chave 24 e motores de quatro tempos. Acontece aos melhores.

DM: Soubemos que tem uma enorme admiração pelo universo feminino e que um dos seus sonhos era ser um insecto e poder um dia entrar numa casa de banho feminina ou num táxi só com mulheres, inclusive a taxista.
Doutor Mara: Não chegaria a tanto, não exageremos. É um facto que tenho muita, para não dizer uma total curiosidade sobre o universo feminino em local tão íntimo. Há qualquer coisa de erótico nessas reuniões alargadas. Desconfia-se que é uma conspiração de Eros e que faz com que todas elas se sintam, subitamente, objectos do desejo masculino. Aqueles pequenos gritos de prazer – se forem realmente  sinceros - de várias mulheres em locais desprovidos de homens são profundamente atraentes. Lembro-me de um realizador de cinema brasileiro, citando outro realizador, ter dito que os homens realizam acções em função de três objectivos: as palmas do público, o tilintar das moedas e o gemido das mulheres. Nem sempre por esta ordem de ideias, o que torna o homem muito objectivo na sua sedução. Não concordam?

DM: É possível, Doutor Mara, é possível.Quer contar-nos como se tornou Homem pela primeira vez?
Doutor Mara: Sim, foi inesquecível e trágico ao mesmo tempo. Foi num acampamento de jovens anti-militaristas com uma jovem esquerdista-libertária, filha de um ex-oficial do Ultramar. O pai apareceu pela manhã sem ninguém contar e abriu o fecho da tenda, obrigando-me a sair e a fazer quatrocentas flexões de uma assentada, a chamada GM (Ginástica Militar). Para mim, o acampamento anti-militarista terminou ali. Ela teve que trabalhar nesse verão e foi proibida de voltar a falar comigo, o que ela acedeu. Encontrei-a alguns anos mais tarde numa arruada de um partido da direita conservadora, com um cheiro a perfume de rosas e uma mala Channel. Questionou a minha relação com as drogas recreativas e desejou-me sucessos para minha vida futura. Virei costas, apertei os atilhos dos sapatos e fui comer umas iscas ao “Zé Manel dos Ossos”.

DM: Doutor Mara, sinceramente, acredita na fidelidade?
Doutor Mara: Tenho um velho amigo que após muitos anos a “olhar os lírios do campo” se dedicou à família e aos seus cinco filhos. Os resultados foram surpreendentes. Hoje consegue ser mais fiel que o Pluto, o seu cão de estimação. Um amigo da minha de infância passada junto do mar, recém-regressado da Islândia, onde fez o doutoramento em Espeleologia e Minerologia, confessou-me a este propósito que tudo vai bem desde que não se saiba. Ora bem, a fidelidade é um prato de duas bocas, como eu costumo dizer. Só come quem quer! Por isso prefiro a exaltação da lealdade, isto é, ser fiel a um compromisso, a uma verdade partilhada. Será que aceitam esta resposta?
DM: Claro que sim, Doutor Mara. Foi mais uma vez um enorme prazer falar consigo. 

PANAZOREAN na Ilha Terceira

“Die Fremde” de Feo Aladag.

           Duas noites de cinema dedicado ao diálogo intercultural no Centro Cultural de Congressos de Angra do Heroísmo numa extensão do Festival Panazorean, evento com sede em São Miguel, e que se realizou durante mês de Abril do ano passado em Ponta Delgada. Belíssima e arrojada iniciativa pautada pela exibição na terça-feira, dia 22, pelos filmes “50 Pesos Argentinos”, “Down in Egyptland” de Lukas Zund e “Mazagão, a Água que Volta” de Ricardo Leite e, na noite de quarta-feira, dia 23, pela exibição dos filmes “PDL- LIS" de Diogo Lima e “Die Fremde” de Feo Aladag.
      As sessões sempre bem compostas de público e com os filmes a surpreenderem pela positiva.“50 Pesos Argentinos”, prémio do público, melhor filme regional, é um interessante exercício sobre os açorianos que partiram em busca do “el dorado” em terras argentinas e sobre aqueles que no arquipélago permaneceram à míngua das suas expectativas e anseios por não terem partido. “Down in Egyptland, prémio RTP2/Onda Curta, é um objecto cinematográfico bem conduzido, com uma excelente fotografia e uma ainda melhor banda sonora, precisava somente de melhores soluções narrativas. Quanto “Mazagão, a Água que Volta” estamos perante um trabalho arrojado, valoroso enquanto documento mas algo extenso e a necessitar rever alguma consistência nos conteúdos apresentados. Na segunda noite, a atenção recaiu no filme “Die Fremde”, prémio melhor filme internacional, e que é uma auspiciosa e entusiasmante primeira obra de Feo Aladag. O filme gira em volta de Umay, uma jovem turco-alemã que fugindo de um casamento infeliz em Instambul, parte para Berlim onde os seus pais residem, procurando aí a sua emancipação. Tudo seria perfeito caso não existisse esse código de honra tradicional que faz com que “Umay” seja também ela uma estrangeira para os valores da sua própria família. O filme é magistralmente acompanhado pelo piano de Max Richter e as composições de Stéphane Moucha. Os últimos cinco minutos do filme são deveras comoventes e reveladores do melhor que ainda está para vir desta cineasta austríaca. 
            Uma última nota apenas para referir que as sessões eram gratuitas e que no início das mesmas foi  oferecido o livro “Diagnóstico da população Imigrante no Concelho de Ponta Delgada-Desafios e Potencialidades para o Desenvolvimento Local” da organização AIPA- Associação dos Imigrantes dos Açores. Parabéns e votos renovados de estímulo e incentivo mais do que merecidos aos organizadores desta iniciativa de enorme valor.