Caro
Janeiro Alves,
Acredito que talvez pudesse haver outro destino para cada um nós
mas sei agora que isso não foi possível. Os tempos, definitivamente, mudaram.
Soube há dias que Janeiro Alves mandou retirar as obras de
arte da Galeria onde a nossa amiga comum, Miriam Manaia, se encontrava a expor.
Dizem as línguas pérfidas e fétidas que tudo ocorreu quando o amigo Janeiro ouviu
pronunciar sob a forma de eco os termos “curadoria” e “curador”. O amigo
Janeiro pensou que vinha a caminho um mestre de feitiços e magia negra e, muito
antes que ele desatasse a incendiar tudo o que visse, decidiu esconder e
proteger as respectivas obras de arte. Dado que estamos na presença de obras
bastante valiosas, o amigo Janeiro tratou imediatamente de acautelar o seu
futuro e a velhice, ficando assim na posse da obra mais cotada da exposição:
“Peregrinos Contemporâneos”, que se encontra já na sua posse numa cave da
capital, onde vai semanalmente pôr o colesterol em ordem com um queijo limiano.
Como
eu o compreendo, meu caro amigo, todos gostaríamos de ter uma velhice sossegada.
Quem sabe: um país de corais e tesouros ao virar da esquina? Uma vasta planície
de Camélias Sinensis na Primavera, eu sei lá? Acredito, isso sim, que talvez pudesse ser
melhor o nosso presente. Muito melhor, certamente. Tudo menos este navio que
vemos diariamente em plano inclinado. Há muito afundado por ganchos refinados
de piratas que agora também escrevem papéis no Hemisfério sul. Sabe, tanto como
eu, que sempre que abrimos a goela para esta proferir um testemunho de
esperança, cai-nos de súbito uma pevide na garganta. Por isso, demora tanto
para que a semente germine e dê flor. Consola-nos, portanto, ter amigos que
passam o dia inteiro à beira-mar especados. As lembranças de gente até aos corredores
na casa dos pais em dia de aniversário, ou quando tínhamos avós com
relógios-bússola ou mapas imaginários. Ou ainda aquele tio que esteve no
Ultramar e que agora é perito em filatelia, silvicultura e monocastas.
Acredito
sinceramente que talvez um dia nos devolvam o êxtase de andar por aqui. Aquele
eterno orgasmo patriótico, o sorriso cândido e gentil das raparigas quando
passam ou simplesmente o odor das castanhas quentes no frio de Novembro. O que
é um facto é que talvez pudesse haver outro destino para cada um nós. Talvez,
mas por agora o que me ocorre é simplesmente comer os filetes de peixe que se
encontram neste tupperware que o meu querido amigo enviou recentemente.
Com
elevada estima e consideração,
Doutor
Mara
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