quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Ler e Conversar

      Está ali sempre sentada. Basta-lhe uma mesa livre e sossegada numa biblioteca pública sempre actualizada. Ela senta-se e, tal como numa silhueta próxima das “Meninas”, de Velasquez, fica quieta a ler. Quem a vê, julga que está perante uma imagem muito antiga, parece avistar uma pintura de um quadro de um século remoto, uma fisionomia singular ou parecença de um vulto de um outro tempo. Não que ela queira ser avistada, ou que use as leituras para se afirmar, mas sim porque aquelas leituras são o sinal da sua existência, a sua vitalidade enquanto ser pensante, existente. É como se ela estivesse ali a cumprir uma função, por vezes parece incumbida de uma missão ou no alcance de um desígnio maior para uma vida rica e sábia. Vê-la ali a ler é deveras um privilégio, pois são raras imagens com esta força, com esta subtil presença. Uma leitora ávida numa biblioteca, só pelo gosto, pelo prazer de ler. Não há bolsas para leitores mas, depois de vê-la tantas vezes a ler, bem que podiam muito bem existir e que ninguém levaria a mal se ela a tivesse, se ela pedisse. Ela lê mais que qualquer um de nós, ela já leu o que nós nem sonharíamos alguma vez ler e por isso devíamos ter orgulho nisso. Nós, pobres leitores. Esta leitora lê tudo: jornais, livros, revistas, boletins, anúncios e o que mais houver para ler. A esta leitora tudo lhe interessa e por isso a vida continua, mesmo que o tempo ou a juventude arrogante diga o contrário. Descobrir assim uma leitora é reviver o prazer inicial da leitura. A curiosidade não tem fim. Esta leitora lê em silêncio, a maior parte das vezes numa mesa sozinha, com os seus apontamentos, as suas notas, os seus provérbios, os seus pensamentos, a leitura em modo voraz. Tem nome de flor e os seus cabelos parecem ondas de mar revolto, agitado, num rosto cavo, frágil e umas feições que acusam o passar do tempo. As suas rugas contam muitas vidas, muitas histórias. Ela foi professora a vida inteira, daí que não possa perder tempo com minudências, com coisas sem importância. Ela diz mesmo: “O que eu gosto mesmo: ler e conversar”. Sem mais.

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