Caro Doutor
Mara,
Vejo que as
suas fontes de informação há muito passaram o prazo de validade, e actualmente
não passam de “lixo”. Temo que esteja a ser ludibriado pelas companhias e infectado
pelos andrajosos recantos que frequenta, já para não falar dos malefícios dos
vícios que não consegue largar. Todos estes factores levam-no a formular
cenários imaginários que em nada correspondem à minha realidade. Não fossem
estas cartas pessoais, e as minhas credenciais arderiam em fogo posto
premeditado, ainda que revestido de uma certa negligência atenuante. Não me
escuso porém a incluir-me na culpa gravosa destas inverdades, pois o facto de
não o pôr a par das minhas inquietações mais amiúde também contribui para essas
suas construções fantasiosas. Suas, e dos seus amigos.
Numa
situação normal, seria uma perca de tempo relatar-lhe o meu quotidiano actual
de forma detalhada, mas a circunstância assim o exige. Pois fique sabendo, Dr.
Mara, o que tenho feito nos últimos meses. Acordo por volta das 9 da manhã,
visto o fato de treino e vou ao café. Aproveito para ler a bola, enquanto bebo
um café acompanhado de um pastel de nata. Com o estômago já forrado, bebo duas ou
três minis enquanto discuto com o empregado os acontecimentos da última
jornada. De seguida vou ao mercado, e compro dois peixes, um para o almoço e
outro para o jantar. Às vezes dois bifes, um para o almoço e outro para o
jantar. Depois do almoço dedico-me a actividades lúdicas, tais como rever a
minha colecção de selos ou fotografias antigas, lavar o carro com a mangueira,
alimentar com os restos do almoço as minhas plantas carnívoras do jardim, ou
simplesmente ver vídeos do México 86. Ao fim da tarde nunca perco o Preço Certo
em Euros, e depois disso o habitual itinerário – novela, telejornal, jantar,
novela. À noite vou à tasca do Victor, que tem um bom bagaço das Beiras, e jogo
uma suecada com amigos. De seguida dirijo-me aos meus aposentos, visto o meu
pijama às riscas, e deito-me. Nunca adormeço antes de ler duas ou três páginas
do meu livro de auto-ajuda, e de engolir duas cápsulas de Cálcio Mais.
Como vê,
esse indivíduo dissertador de Alfama que se pavoneia pelos salões da
intelectualidade Lisboeta está longe de ser Janeiro Alves ou algo que se
pareça. É certo que tenho vindo a alterar os meus hábitos, mas lá terei as
minhas razões, e obviamente não lhas poderei transmitir, sob pena de se
esvaziar por completo a capa de incerteza que paira sobre a minha existência.
No que
respeita aos desinfectantes intestinais e paneleirices revigorantes,
aconselho-o a experimentar uma boa feijoada à Transmontana com vinho tinto da
Bairrada e vai ver o que é vigor e desinfecção! Uma limpeza. De qualquer forma,
sei que apesar destas mariquices de gengibre, o Doutor se trata bem. Gosta de
dar ao bigode, como se costuma dizer. E é por isso que lhe envio à parte, num
tupperware, os seus filetes de peixe favoritos, adquiridos no inigualável Pitéu
da Graça. Espero que aprecie.
Por fim, não
poderia deixar de referir que envidarei todos os esforços para estar presente
na inauguração da exposição da nossa muy amiga Miriam Manaia, pelo que se nos
encontrarmos, vêmo-nos concerteza. Apesar das suas obras mais emblemáticas e
por si referidas, vou propositadamente para admirar de fascínio e estupefacção
aquela que para mim é o ex-libris das
suas obras, o “avultado desejo de cobrição”. Há anos que a tento adquirir.
Quanto ao seu périplo pelas universidades do país, é uma óptima notícia, pois
enquanto andar ocupado com essas matérias não terá tempo para espalhar boatos
espalhafatosos e alarves sobre Janeiro Alves, que é como quem diz sobre a minha
pessoa.
Dito isto, e
porque a missiva já vai longa, sublinho que o meu caro amigo ainda vai a tempo
de reverter o processo de degradação da minha imagem pública além-mar. Não me
leve a mal por insistir nesta questão, mas será fundamental para a novidade que
lhe quero dar – Pretendo candidatar-me a Presidente da República Portuguesa.
Com elevada
estima e sentido de estado,
Janeiro
Alves
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