Ao princípio, eram os filmes. Ia-se ao cinema ver
filmes, e não, a pretexto de filmes, “ver Cinema”. Foi preciso passarem
décadas, para haver História (do Cinema). Chegarem os “Cahiers”, para haver
Teoria (do Cinema). Dos cinemas, salas escuras povoadas de cabeças e corpos,
emoções e suores, ansiedades por um tempo esquecidas, mãos por um tempo
entrelaçadas, passou-se ao Cinema, Arte 7ª, sem a presença da qual (ou o seu
peso em estrelas) nos dizem hoje que não adianta ver filmes. Escreve-se em
jornais diários como se o mundo fosse dos cinéfilos, teoriza-se aí à falta de
lugares próprios, que por cá nunca medraram – a prova de que os cinéfilos
sempre foram escassos, como quase tudo. Continua-se, pois, a ver apenas filmes, como a diferença – e não
é pouco – que os cinemas perderam aquela ar de templos da escuridão e locais da
cavaqueira nos imprescindíveis intervalos, para se tornarem cada vez mais,
iscos de compras em centros comerciais: “o filme não prestava, mas comprei uma
camisola nos saldos”. Mas cada um, como no princípio, leva uma vez por outra
para casa uma história, uma ideia, uma frase, uma música, um plano que talvez
não venha esquecer, tenha ou não estado perante uma credenciada “obra-prima”.
Como leva também a ligação “daquele filme” a coisas da vida, desse tempo ou
desse dia, a que a memória para sempre associará. Tudo isto são minúcias que a
“Arte pela Arte”, hoje arrogantemente triunfante, teima em ignorar.
I Vitelloni de Federico Fellini (1953) |
Quem viveu a vintena
nos anos 50 e alvores dos 60, em Lisboa, sabe bem do que estou a falar. Mas não
é mau relembrá-lo, quanto mais não seja para que os espectadores de hoje se
libertem de complexos face às “estrelas” dos críticos, que tantas vezes podem
viciar a nossa relação com os filmes,
levando-nos à frustração de não ter visto neles o que nos foi inexoravelmente
anunciado: “a não perder”.
Víamos westerns (a que chamávamos filmes de
cow-boys) sem saber que eram do Ford ou do Walsh, musicais sem conhecer Bubsy
Berkeley, comédias ou melodramas sem nunca ter ouvido falar de Mankiewikz, de
Sirk ou de Lubitsh. Mas, à primeira, fixámos o nome do De Sica (com os “Ladrões
de Bicicletas”, e logo depois, com o “Milagre de Milão”) e do Fellini (com “La
Strada”). Rimos perdidamente com Abott&Costello ou com Danny Kaye, mas
rimos e pensamos ao mesmo tempo com o
Toto e com o Fabrizi.
Não esquecemos o Bogart ou a Bette Davis, mas nenhum dos seus filmes
nos terá deixado as marcas de um “Arroz Amargo”, visto talvez num alvoroçado
2ºbalcão do Império. Quem o realizou? Sabemo-lo hoje, mas já não precisámos que
nos viessem recordar que era com a
Silvana Mangano, que nos infernizou os corpos na altura. Como lembramos a
Sophia Loren da série “Pão, Amor e…”, sem ainda sabermos que estava ali uma
grande actriz, coisa de que nunca tivemos dúvidas da Alida Vali (no “Terceiro
Homem” e depois no Senso”) e no da Magnani, que não víramos na “Roma, Cidade
Aberta”, ainda andávamos de calções, mas admirámos na “Belíssima” ou em “A
Comédia e a Vida”. Como guardámos fundo também o De Sica-actor nesse magnífico “Generale
della Rovere”, filme que, talvez por demasiado sartriano (atributo nada
recomendável nos nossos dias), está hoje
no limbo dos objectos secundários nas
histórias do cinema europeu.
Pela distorcida imagem
– todas o são, de resto que dou dos filmes que frequentámos naqueles
anos não será difícil imaginar o papel que o cinema italiano ocupa na memória
dos que então aprenderam a amar o cinema (com “c” pequeno, esse de que cada um
tem a sua história privada), e a precisar dele como pão para a boca. Talvez me
engane muito, mas acredito que nesses anos terá chegado a haver momentos em que
eram italianos a maioria dos filmes exibidos nas salas de estreia de Lisboa. A
que atribuir tão grande popularidade? Que teriam eles de tão particular?
Boa
parte deles passava-se na actualidade de um país destroçado pela guerra e pela
ocupação, derrotado, com enormes carências no quotidiano, cada um a ter de
recorrer a mil expedientes para sobreviver. Os cenários eram muitas vezes
naturais, os actores muitas vezes não-profissionais. As histórias eram quase
sempre de “gente comum”, dos seus dramas, grandezas e misérias. Universo de
pequenos funcionários, de polícias e ladrões de meia tigela, empregadas
domésticas, pescadores, trabalhadores agrícolas, desempregados, oportunistas e
vigaristas, novos-ricos e biscateiros. Universo das “insignificantes” alegrias e tristezas de toda essa
gente, de tantos heróis ignorados, de amores e ódios desmedidos ou caricatos,
de violência das emoções e das paisagens (lembro “Stromboli”), de ternuras e
generosidade sem fim, de lutas inglórias ou patética, de exploração e raiva.
Numa palavra, universo de resistência.
(continua)
João Martins Pereira