Caro Dr. Mara,
À excepção do envio dos
inevitáveis filetes de peixe, todo o conteúdo da última carta que lhe remeti no
dia 1 de Abril não passou de um mero exercício de ficção, em nada
correspondendo à verdade. Espero que tenha apreciado.
Gostaria de lhe dar uma
explicação sobre o quadro subtraído da exposição da nossa amiga Miriam Manaia.
Tratou-se de uma cabala, meu caro. Foi recolhido por um indivíduo que se fez
passar por Janeiro Alves, mas que na realidade fazia parte de uma ala extremista
da Máfia Russa sedeada em Volgogrado. Os meus capatazes puseram-me em contacto
com o cabecilha, com quem encetei complexas negociações. Naquela mesma semana viajei
para a Rússia com o objectivo de resgatar a obra de mãos criminosas, e a missão
foi um sucesso. Não consegui trazer o quadro, mas fiz muitos amigos e
diverti-me bastante por lá. Fui muito bem tratado, e no final ainda fui
presenteado com um conjunto de bonecas russas em porcelana e duas garrafas de
vodka.
Esclarecido este ponto,
queria partilhar consigo o facto de me encontrar agora num período de reflexão,
e de ter regressado à jardinagem. A complexa e fascinante geometria das plantas
fornece-me concisas indicações de conduta, e alegres ilusões de beleza e
proporção. No final, a frescura da erva cortada e dos ramos podados cintila no
ar, e a passarada precipita-se harmoniosamente pelo jardim, comemorando uma
espécie de libertação das trevas. Acredite Dr. Mara que este retiro me tem
fornecido o vigor mental necessário para regressar com toda a pujança ao
implacável relógio suiço que é a cidade onde vivo.
Mas deixemos para trás os
pequenos trechos de quotidiano que salpicam a trajectória disforme da minha
luta, e foquemo-nos em aspectos mais relevantes, e que têm a ver com a sua
individualidade. Dir-lhe-ei desde já que me chateia, já para não dizer que me
aborrece, o facto de saber de si sempre por interposta pessoa. Sei tudo sobre
si, Dr. Mara, pese embora o facto de pouco me contar. Sei que anda muito
ocupado na escrita, que escreve para cinema, para teatro e mais além, para si
ou para alguém, de noite e de dia, à excepção de comer e beber, já não pára de
escrever. Dizem-me que o vêem de vez em quando a passar meio apressado, com a
barba por fazer, e com papéis a esvoaçar dos bolsos do seu casaco. Este seu
invejável fulgor na escrita seria para mim motivo de regozijo em toda a
plenitude do termo, não fosse a preocupante circunstância de o terem visto a
entrar no consultório de um psiquiatra. O que se passa consigo Doutor Mara?
Com a mais profunda amizade,
Janeiro Alves