domingo, 14 de junho de 2015

Foram as Bicicletas que Inventaram o Verão

              A partir do momento em que as nuvens negras desaparecem, os guarda-chuvas são arrumados nas prateleiras, o azul do céu se torna estável e a temperatura aquece, há quem tire a bicicleta da garagem e anuncie aos quatro ventos que a democracia nas estradas ganhou um novo parceiro.
      Acreditem, isto não é nostalgia. E quem escreve não é nefelibata. As bicicletas também têm espaço neste mundo cheio de futuro ou de povos que insistem em não ter memória. Pois, para alegria de uns e desespero dos outros, o veículo de duas rodas nunca estará na moda aqui em Portugal, principalmente nas principais cidades. A prova máxima disso encontra-se na imagem do seu utilizador comum, que a maior parte das vezes ostenta uma cara dor e sacrifício sempre que é visto a puxar por pedais e cremalheiras. Outra das razões que os mais preguiçosos apontam para o insucesso deste velocípede tem a ver com a constituição física das nossas duas cidades maiores, onde abundam as descidas picadas e as subidas extremas.
       Estamos, por isso, longe do norte europeu, onde a bicicleta a pedal foi talvez o mais amado dos transportes terrestres. Em países como a Holanda, a Bélgica, a Dinamarca, o Reino Unido, jamais se pedalou por obrigação, mas por prazer, sendo raro conhecer-se belga, holandês ou dinamarquês que não tenha uma "ginga" arrumada no quintal ou na garagem. Mais ainda teriam a dizer os seus antepassados, pois não terá sido por acaso que a primeira bicicleta com pedais (na roda dianteira) foi construída, à volta de 1839, por Kirkpatrick Macmillan, um ferreiro escocês. Mas seria só em 1885 que apareceria a primeira bicicleta moderna reconhecível, com uma corrente fazendo a ligação dos pedais à roda traseira. Este modelo foi denominado "bicicleta segura", por ambas as rodas serem de tamanho igual, em vez do modelo anterior, no qual o ciclista se sentava no topo de uma enorme roda dianteira. Esta nova bicicleta criaria uma vaga ciclística na Europa e nos Estados Unidos, providenciando aos trabalhadores um meio de transporte barato e conveniente. O aparecimento do automóvel, nos primórdios do século XX, diminuiu gradualmente o papel da bicicleta nos países desenvolvidos, mas ela mantém-se como uma forma básica de transporte em muitas outras partes do mundo.
                Neste pequeno país do sul da Europa, os primeiros a tomarem o gosto à bicicleta foram os operários, que mais tarde, na sua condição de "remediados", deixaram as suas estimadas "pasteleiras" e adquiriram motorizadas de "terceira divisão", verdadeiras promotoras da poluição sonora e atmosférica. Hoje, os filhos da classe média sonham com motas potentes, dotadas de encantadores ruídos capazes de seduzir as suas femininas paixões. Um dia, já com a tal mota, perceberão que os pais delas teriam preferido que as filhas dessem umas voltas com eles nas bicicletas. "É mais seguro e mais económico" - dirão para os lençóis numa noite de sábado.
                Num passado não muito longínquo vivíamos agarrados às histórias dos descobrimentos e à visão poética do mar, dos barcos e dos marinheiros, que marcaram e definiram a imagem deste povo e da sua história trágico-marítima. Actualmente, deixámos o Atlântico e virámo-nos para a Europa, provando as estatísticas a espectacular subida das vendas de automóveis. Esses veículos poluidores, verdadeiros "dealers" de monóxido de carbono: grandes consumidores, para grandes viciados e grandes intoxicados. Tudo em grande. E foi mesmo o automóvel que, nos primórdios do século que passsou, fez diminuir o papel da bicicleta nos países desenvolvidos.
                Em Aveiro, pequena cidade do centro do país, criou-se entretanto a BUGA (Bicicleta de Uso Gratuito de Aveiro), fomentando o número de utilizadores, generalizando o seu uso, facilitando a mobilidade entre os vários espaços citadinos. É com pena que não se assiste à extensão desta medida autárquica a outras cidades planas do território nacional, como Guimarães, Évora, Esposende ou Vila do Conde.
                Pequena é porém a "elite" que insiste em tratar a bicicleta como meio de transporte nobre, que de facto ela é. São os chamados "alienados do pedal". E são realmente os pedais que os fazem mover por essas estradas fora, descida abaixo, subida acima, sempre a pedalar. Adoram a natureza, detestam o barulho e se pudessem acabavam de vez com a poluição no planeta. Para estes, andar de bicicleta representa um estádio superior de civilização. E quem os vê pedalar, cheios de vigor e entusiasmo, chega a pensar que a revolta das bicicletas estará próxima. Pois que seja para breve, bicicleteiros!

(Artigo publicado na zonanon em Abril de 2002)