segunda-feira, 9 de maio de 2016

"Maio" de Raul Brandão

      "Já rebentaram as fontes. Toda a terra se agita, viva, dentando cá fora o seu sonho. Dir-se-ia que sob o chão que pisamos correm rios de tinta que transbordam, subindo nos troncos, cobrindo-os de roxo, de branco, de púrpura e verde…. Vai por esse mundo um deboche de cor. As plantas aparecem-nos na mais linda toilette, os bichos vestem as suas roupas mais ricas. Não há princesa na terra que possua tão maravilhosos tecidos, sedas, oirescências, desenhos, aplicações de igual beleza e juntamente de fragilidade tamanha…. Vi ontem uma vespa a passear numa pétala de rosa…. Tinha caído um desses aguaceiros de Primavera rápidos e precipitados – mas logo o céu correu a jorros, dourando a terra.
(…) O português, que é sempre um poeta, tem esta falha – não ama as flores. Em qualquer canteiro se podem criar obras de prodígio; a mais mesquinha terra é fácil de converter-se em sonho. Pois vê-la-eis estéril e abandonada. Há neste doce país o desprezo da flor – a não ser que ela se possa trocar em moeda corrente. Não é raro vermos numa praça pública abater-se sem protesto uma árvore. É até vulgar!.... Quando uma árvore começa a ser bela, esgalhada e enorme, cheia de ruídos e de sombra, surge o vereador e corta-a, sem imaginar, sequer, que mais vale um simples e humilde plátano do que um conselheiro de Estado. O político é inútil…. Faz mais diferença à natureza o assassinato de uma grande árvore, que dá sombra e frescura, que a alta missão de purificar a atmosfera, do que a morte de meia dúzia de conselheiros de Estado gravíssimos e calvos. Perdoem-me!...
Ah sim! Maio, não era? Era de Maio que eu vinha falando?.... Já rebentaram novas fontes e não há valado, carreiro de aldeia onde não cresçam lírios selvagens, lindas florinhas graciosas e humilíssimas…. As raparigas cortam-nas, enfeitam com elas os cabelos e os seios – e riem, coram, se as olhamos. Só na cidade não há flores. Ontem, ao entardecer, deparei na rua com este caso enternecedor e banal. Nem já se diferenciavam as ressequidas. Uma triste rapariguinha que passava, descalça, de saia rota e cabelos ao vento, apanhou-as da poeira. Sacudiu-as e pondo-as no peito, partiu a cantar numa satisfação imensa, alegre como um pássaro.
Era decerto condão das flores – mas também de Maio que chegou, com a sua magia e o seu sonho. Rebentaram novas fontes, e a terra di-la-eis agitada e viva. Sob o chão que calcamos correm rios de tintas que transbordam e cobrem de árvores de roxo, de púrpura, de verde."

in Brasil-Portugal, Lisboa, 16 de Maio de 1901, pp.125-126- Tb. In Vimaranense, Guimarães, 5 de Maio de 1917, p.1. Retirado do livro A Pedra ainda espera dar flor, dispersos. Raul Brandão (Organização Vasco Rosa).

Sonhos

Dreams de Sten Erland Hermundstad
(imagem You Tube)
         
           Quanto vale um sonho? Quando custa perder um sonho? E os sonhos todos juntos quanto valem? E perdê-los todos num só dia? E abrir mão deles podemos? Há dias em que podíamos muito bem construir todo um universo à volta deles?A música contribui para esse edifício onírico à volta dos sonhos de olhos abertos.Sonhos que permitem que absorvemos o ar todo do mundo, a respiração dos pequenos gestos quotidianos, o esplendor da vida que ao nosso lado se agita. Por isso quando sonhamos sabemos que há sonhos que são unicamente nossos, que nada nem ninguém nos consegue tirar...