"Já
rebentaram as fontes. Toda a terra se agita, viva, dentando cá fora o seu
sonho. Dir-se-ia que sob o chão que pisamos correm rios de tinta que
transbordam, subindo nos troncos, cobrindo-os de roxo, de branco, de púrpura e
verde…. Vai por esse mundo um deboche de cor. As plantas aparecem-nos na mais
linda toilette, os bichos vestem as suas roupas mais ricas. Não há princesa na
terra que possua tão maravilhosos tecidos, sedas, oirescências, desenhos,
aplicações de igual beleza e juntamente de fragilidade tamanha…. Vi ontem uma
vespa a passear numa pétala de rosa…. Tinha caído um desses aguaceiros de
Primavera rápidos e precipitados – mas logo o céu correu a jorros, dourando a terra.
(…)
O português, que é sempre um poeta, tem esta falha – não ama as flores. Em
qualquer canteiro se podem criar obras de prodígio; a mais mesquinha terra é
fácil de converter-se em sonho. Pois vê-la-eis estéril e abandonada. Há neste
doce país o desprezo da flor – a não ser que ela se possa trocar em moeda
corrente. Não é raro vermos numa praça pública abater-se sem protesto uma
árvore. É até vulgar!.... Quando uma árvore começa a ser bela, esgalhada e
enorme, cheia de ruídos e de sombra, surge o vereador e corta-a, sem imaginar,
sequer, que mais vale um simples e humilde plátano do que um conselheiro de
Estado. O político é inútil…. Faz mais diferença à natureza o assassinato de
uma grande árvore, que dá sombra e frescura, que a alta missão de purificar a
atmosfera, do que a morte de meia dúzia de conselheiros de Estado gravíssimos e
calvos. Perdoem-me!...
Ah
sim! Maio, não era? Era de Maio que eu vinha falando?.... Já rebentaram novas
fontes e não há valado, carreiro de aldeia onde não cresçam lírios selvagens,
lindas florinhas graciosas e humilíssimas…. As raparigas cortam-nas, enfeitam
com elas os cabelos e os seios – e riem, coram, se as olhamos. Só na cidade não
há flores. Ontem, ao entardecer, deparei na rua com este caso enternecedor e
banal. Nem já se diferenciavam as ressequidas. Uma triste rapariguinha que
passava, descalça, de saia rota e cabelos ao vento, apanhou-as da poeira.
Sacudiu-as e pondo-as no peito, partiu a cantar numa satisfação imensa, alegre
como um pássaro.
Era
decerto condão das flores – mas também de Maio que chegou, com a sua magia e o
seu sonho. Rebentaram novas fontes, e a terra di-la-eis agitada e viva. Sob o
chão que calcamos correm rios de tintas que transbordam e cobrem de árvores de
roxo, de púrpura, de verde."
in Brasil-Portugal, Lisboa, 16 de Maio de 1901, pp.125-126- Tb. In Vimaranense, Guimarães, 5 de Maio de 1917, p.1. Retirado do livro A Pedra ainda espera dar flor, dispersos. Raul Brandão (Organização Vasco Rosa).