I
"Entretanto, tudo em Portugal se detiorou, sobretudo o verão. Ou pelo menos assim pensava, até que a Fátima e os Açores surgiram como hipótese de fugir à grunhificação do nosso litoral e caminhar para zonas líquidas de outra intensidade. Descobri nos Açores o Portugal que julgava perdido e nunca mais abandonei essa pacificação de viver."
II
"Tudo cansa menos que na Horta, mais húmida, aparentemente mais cheia e, contudo, menos dotada de abundância, os iates trazem consigo uma gente mais boçal, há um café de ademanes turísticos por junto de armazéns dos Bensaúde onde estes labregos das ondas se juntam, um espaço desagradável com um comércio de osso, fotografia e isqueiro, um pouco para o porto como as loja bentas para o santuário de Fátima."
III
"(...) O Corvo de Raul Brandão, como os Açores de Raul Brandão, há muito que deixou de existir. Com a chuva, a luz da água que tombava nas encostas, na cercania do porto ficava mais nítida do que com o sol. Comecei a despedir-me dos palheiros, ao cimo, à direita, pelo alto de Vila Nova, e no porto, quase rente às hélices, as crianças nadavam e gritavam e viam partir lanchas como a nossa para a pesca, para a vida sem Deus. Não era um éden; era uma terra que queria viver e o tentava fazer bem. Talvez um pouco monótona, talvez com enraizados pré-conceitos, mas com rádio local, com vídeos, como na Amadora ou em Rio Tinto ou em Torre de Dona Chama- sem a agressão de uma sociedade do anonimato, com as agressões de uma sociedade de vizinhos. Sobretudo, com as mesmas formas de morrer."
Joaquim Manuel Magalhães, Do Corvo a Santa Maria, Relógio de Água, 1993