terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Duma Ilha

     "Dorme-se numa furna para ver amanhã o nascer do sol.Quem quer, dorme às estrelas.Vamos...o que eu procuro, pela última vez na minha vida, não é o panorama - é a exaltação da vida livre."

Raul Brandão in As Ilhas Desconhecidas, 1924.

domingo, 15 de janeiro de 2017

Ânsia de Ser

       revolvo-me em ânsias de vir a ser alguma coisa pra cá dos cérebros parvamente adormecidos em não querer ser vácuo vontade e ainda pra cá dos espíritos grandemente iluminados em redenção apoteótica do século vinte.
     pirâmides-Nada esfíngicas e espumantes são hoje para mim pesadelo constante  acordar tarde invadido em vago receio espectral e histérico de não triunfar de não vir a ser aquilo onde se resume toda a minha ânsia todo o trabalho positivo do meu ser lúcido que vive agora pra cá do outro romanticismo-parvo falta vontade de ser morto felizmente na minha vida.

no dens´umbroso deserto de desilusões com ventos alíseos de Tédio com dunas de desespero e caravanas  de desiludidos achei um oásis  de luz minh ´alma esguiando-se para o infinito lambem-me as faces contraídas em rictus  féericos de terror enroscando-se por mim arquejante de ânsias com ondulações voluptuosas de sereias as labaredas  de todos os incêndios há séculos pra dentro da história e acesos hoje à minha louca imaginação absurda e ansiosa no rodopiar dos meus pensamentos em velocidade  genial muito maior que a da hélice  de qualquer  aeroplano muitíssimo maior que qualquer  velocidade positiva existente no estado actual civilização incompleta do mundo dos grandes  inventos infinitamente pequenos à vista dos que falta  inventar tantos e tão grande que o nosso pensamento não atinge  dado o limite  parvo balisa de ferro que o restringe em opacidade banal. "

Almada Negreiros, Poesia Futurista Portuguesa (Faro  1916-1917), Selecção e Prefácio de Nuno Júdice.

Um verso de Cesário Verde

Se ela quisesse amar, no azul do espaço.

sábado, 14 de janeiro de 2017

Os Pescadores de Raul Brandão

       "Quando regresso do mar venho sempre estonteado e cheio de luz que me trespassa. Tomo então apontamentos rápidos - um tipo – uma paisagem. Foi assim que coligi este livro, juntando-lhe algumas páginas de memórias. Meia dúzia de esboços afinal, que, como certos quadradinhos ao ar livre, são melhores quando ficam por acabar.
      Estas linhas de saudade aquecem-me e reanimam-me nos dias de inverno friorento. Torno a ver o azul, e chega mais alto até mim o imenso eco prolongado…Basta pegar num velho búzio para se perceber distintamente a grande voz do mar. Creou-se com ele e guardou-a para sempre. – Eu também nunca mais esqueci…."

Raul Brandão, Os Pescadores, 1924, Bertrand Edições.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Sala de Embarque: Primeiro Ensaio de 2017



Fotografia de Carlos Olyveira
Regressamos aos ensaios, desta feita num anexo da Pousada da Juventude.  Agradecidos pela generosidade, o cuidado, a abertura. A partir de agora é nossa vontade ensaiar cada vez mais - melhorar, exercitar, procurar as personagens, encontrar a real envolvência das cenas. Esta proposta teatral irá ser construída a partir das possibilidades que o texto e as circunstâncias permitirem. Necessitamos, por isso, de discutir novamente o processo e continuar este labor partilhado e colaborativo. Com o novo elenco é essencial encontrar o tom, o ritmo e os diálogos entre as personagens. Mais tarde, lá para o fim do mês, contaremos com o apoio da encenadora Lígia Soares. Hoje, também fomos visitados pelo Carlos Olyveira, fotógrafo de cena e colaborador habitual, veio dar conta e imagem do início das “hostilidades”, este recomeçar da leitura, o encetar de uma nova aventura.  Assim possamos e desejamos chegar a bom porto.

domingo, 8 de janeiro de 2017

Dois poemas de Ana Paula Inácio

...

os corpos sabem os caminhos
nós
o desejo


habitamos a ternura
como a espada
a traqueia
fecunda
é a ferida
que nos abre

Ana Paula Inácio, ANÓNIMOS DO SÉCULO XXI, Averno, 2016.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Isto não é um poema sobre o verde

Isto não é um poema sobre o verde
dos campos do meu avó por onde
correu a minha infância.
Isto não é um poema sobre o amor
da minha mãe. Um amor tão grande
que lhe deu forças para me levar
em braços para o hospital só para eu não
morrer daquela vez.
-E morremos tantas vezes nesta vida!
Isto não é um poema sobre a língua do
animal que me lambe as feridas nem sobre
as mãos do homem que me sustenta o coração.
Isto não é um poema sobre o mar grande
que rodeia a ilha nem sobre os peixes
os corais as baleias e os barcos que
habitam esse mar.
Isto não é um poema sobre danças
insanas movidas a raiva e etanol.
Isto não é um poema sobre o arrepio
das canções do Jeff nem sobre a luz
de “Laughing Heart” de Bukowski.
Isto não é um poema sobre as veredas
que atravessei ladeadas por cardos
que castigam as pernas nuas e
nos enchem a boca de palavrões.
-Às vezes é preciso dizer porra!
Isto não é um poema sobre o meu medo
o medo do lobo mau o medo de Al Berto
o medo de Rosselini e o medo de Martins Garcia
Isto não é um poema sobre o palito na boca
do Ryan Gosling nem sobre o sorriso sádico
da esteticista a arrancar bandas de cera.
Isto não é um poema sobre a alegria concreta
de um prato de chicharros fritos com
batata doce para o almoço.
Isto não é um poema sobre o sossego do gato 
que dorme em cima das minhas coxas
nem sobre as inquietações do funcionário da repartição.
Isto não é um poema sobre a vaca sagrada
da ilha nem sobre a vaca profana do Caetano.
Isto não é um poema sobre jardins marinhos
nem sobre o brilho de prata de água pura.
Isto não é um poema sobre a pomba do
Espírito Santo nem sobre a fé mal amanhada
dos homens.
Isto não é um poema com foguetes e roqueiras
e fogo de artificio no final
Isto não é um poema. Mas podia ser.

Gina Ávila Macedo, in Grotta-arquipélago de escritores, Letras Lavadas, 2015.