sábado, 24 de outubro de 2015

Da Curiosidade

"Inventamos histórias para dar forma às nossas perguntas; lemos ou ouvimos histórias para perceber o que queremos saber. Nos dois lados da folha, somos levados pelo mesmo impulso questionador, pelas perguntas de quem fez o quê, e porquê, e como, para que possamos, por nossa voz, perguntar a nós próprios o que é que fazemos, e como e porquê, o que aconteceu quando se faz ou não faz alguma coisa. Neste sentido, todas as histórias são espelhos do que julgamos ainda não saber. Se for boa, uma história suscita no seu público tanto o desejo de saber o que acontece a seguir como o desejo contraditório de que a história nunca acabe: este duplo vínculo justifica o impulso de contar histórias e mantém a curiosidade viva."  

in Uma História da Curiosidade, Alberto Manguel, edições Tinta da China, 2015. 

Postal de Inverno para Miriam Manaia

Querida Miriam Manaia,

Amanhã retoma o horário de Inverno e eu sinto por mim adentro uma rara e obtusa melancolia, aquela coisa acintosa que me faz cair vertiginosamente no silêncio, afastando-me assim da voragem dos dias e do tempo, impondo deste modo um recolhimento interior que só terá ecos de si no relançar das folhas e das flores lá para os finais de Março com o advento da Primavera e da claridade dos dias. O meu ser quedará sombrio e triste, eu sei, nada a fazer.  
Curiosamente, amiga Miriam, encontro-me na sua cidade, habitando bem perto do solar dos Manaias, por isso não tardarei a bater-lhe à porta numa destas tardes da invernia onde farei tensões de me juntar a si  enquanto pinta ou escreve. Ou quem sabe ler os diários do Outono que tenho escrito por aqui.   
 Deste seu amigo, a frequentar novamente lugares de pendor natural e bucólico.

Atenciosamente seu,  

Doutor Mara

Da Injustiça

As nossas organizações sociais, no entanto, ainda existem rótulos, requerem catálogos e estes tornam-se inevitavelmente, hierarquias e sistemas de classe em que alguns assumem o poder e outros ficam excluídos. Toda a biblioteca tem a sua sombra: as infindáveis estantes de livros que ninguém escolheu, que ninguém leu, livros rejeitados, esquecidos, proibidos. E, no entanto, a exclusão de qualquer assunto da literatura, quer por arbítrio do leitor quer do escritor, é uma forma de censura inadmissível que degrada a humanidade de todos. Os grupos ostracizados pelo preconceito podem ser, e geralmente são, postos de parte, mas não para sempre. A injustiça, como já devíamos ter aprendido, tem um efeito curioso nas vozes das pessoas. Empresta-lhes potência e clareza, recursos e originalidade, que são todas elas boas coisas para se ter, se o que se pretende dor a criação de uma literatura. 
in "No Bosque do Espelho", Alberto Manguel, Tinta da China, 2013.