José Gonçalves de Sousa, o “Chalandra”, boné
de marinheiro, grossa camisola de lã, botas de cano alto, e o inseparável
cachimbo, protótipo do velho lobo do mar, a surgir-nos em qualquer porto das
setes partidas do mundo.
Nascido a 2 de Abril de 1892 na Rua do
Armador, no pitoresco bairro do Corpo Santo dominando e perscrutando do cimo da
Rocha, a vastidão oceânica, e onde desde há muito se aglomerou os mais díspares
misteres correlativos da faina marítima.
Mourejou longos anos na América do Norte,
mais precisamente em New Bedford, centro piscatório onde se radicaram muitos
pescadores portugueses, mormente açorianos, entregando-se à pesca da lagosta.
De visita a esta ilha em 1918, receberia a
medalha de prata do Instituto de Socorros a Náufragos, por ter salvo a 31 de
Março do referido ano, sob forte temporal que por essa altura assolou a nossa
ilha, os tripulantes de dois frágeis barquinhos de pesca.
Regressado definitivamente, e como jamais se
adaptasse aos modos rudimentares da pesca artesanal, dedicou-se ao transporte
de passageiros dos navios que então escalavam o nosso porto.
Os seus barcos a motor, as gasolinas, Angra, Humberta, Vouga e Porto de Pipas, eram dum asseio
inexcedível, sendo o próprio “Chalandra” quem orientava a manutenção, incluindo
a dos motores.
A 23 de Janeiro de 1929, arrostando com um
violento vendaval, subindo com o seu barco “Angra” às cristas das alterosas
vagas, ousou salvar os tripulantes do lugre “Amphitrite I”, numa épica
odisseia, a esmaltar as páginas da História Marítima dos Açores, senão de
Portugal.
Dois louvores lhe foram atribuídos pela
Capitania do Porto de Angra, a atestarem o apreço das autoridades marítimas
pelas suas qualidades de abnegada coragem e altruísmo.
O primeiro
refere-se à sua preciosa actividade de recuperação da âncora do
contratorpedeiro “Vouga”, e o segundo na cooperação prestada nas buscas
marítimas, no local onde caiu um avião da Base Aérea 4.
Desembarcado nesta
ilha o primeiro contingente inglês, aquando do último conflito que avassalou o
mundo, logo o “Chalandra” se
tornaria elemento imprescindível, quer como intérprete, quer como elemento de
ligação nas operações portuárias.
A ilustrar
eloquentemente a sua acção durante os três anos de permanência das forças
britânicas nesta ilha, demonstra-o o facto de ter sido galardoado com a
“Medalha do Rei Jorge VI”, imposta pelo vice-Marechal do Ar, Geoffrey Bromet,
com o devido cerimonial no forte de São Sebastião (Castelinho), passando então
a ser incluído na lista de convidados a todas as celebrações realizadas pelos
ingleses.
Mas se tais
honrarias são atributos a enriquecer o “curriculum” dum velho lobo do mar que
pautou a sua vida pelo amor devotado à família e ao mar, não menos
significativo terá sido o facto de a ele se referir o escritor dinamarquês Knud Andersen, no seu livro Med Sejleren til Azorern, bem como inspirar
Victorino Nemésio, o imortal autor de Mau
tempo no Canal, honra de literatura açoriana, a ombrear com os gigantes da
literatura universal.
Dir-se-ia que, por ironia do destino,
encontrando-se o autor destas linhas no dia 30 de Agosto do ano em curso,
sentado com o seu colega Adelmar Toste, na explanada do largo Prior do Crato, o
acaso permitiu que entabulássemos conversação com dois jovens casais de
estrangeiros.
Tratava-se de quatro dos onze tripulantes do
iate de recreio NANA fundeado na
nossa baía, cujos nomes são Kristian Sondergaard (Capitão), Marianne Rasmussen
e o seu filho Buller, Torben Schipper, Anne Nielsen, Bent Madsen, Lisbeth
Noblerod, Iben Haar, Per Farlow, Henrik Meind e Morten.
Sendo-lhes lidos os períodos referentes ao
escritor seu conterrâneo, mostraram-se deveras interessados, pois que o livro Med Sejleren til Azorern foi o único
trabalho escrito em dinamarquês sobre os Açores, encontrado nas bibliotecas
daquele país, permitindo-lhes seguir a mesma rota que o seu autor seguira há
trinta e cinco anos.
E como demonstraram interesse em ler a
dedicatória com o autor obsequiara o nosso biografado, fui a casa com rapidez
que me permitem as minhas 62 respeitáveis primaveras, e não menos respeitáveis
cem quilos, em busca do exemplar que há poucos dias me havia emprestado a D. Humberta
de Sousa, viúva de José Gonçalves de Sousa, “O Chalandra”, a quem a dedicatória
é extensiva.
E foi com muito
interesse e carinho que os quatro jovens dinamarqueses leram as palavras
desvanecedoras que o notável homem de letras escandinavo dedicou à família Chalandra a vincar a proverbial
hospitalidade terceirense.
in páginas 192 e
193, do livro Filósofos de Rua, de Augusto Gomes, acabado de imprimir nas
Sanjoaninas do ano de 1984.