Fotografia de Tânia Santos (São Jorge) |
sexta-feira, 28 de junho de 2013
Viver numa Ilha
Ilustração de Pedro Valim |
Encontrei Eunice ao cair do dia
num fim de tarde de cansaço e de afazeres. Esta trazia no entanto os olhos muito
brilhantes e o cabelo arrumado, tipo ondas, doirado como sempre. Não nos víamos há tamanho
tempo daí a sua demonstração de surpresa quando me cumprimentou de forma
coloquial com um sonoro e interrogativo:- Como
anda o senhor que passa a vida a vida a fazer guias turísticos? Pediu-me desculpas por nunca mais ter dito nada desde que
nos vimos da última vez, numa daquelas noites em que proferimos palavras de
circunstância misturadas com outras meio estranhas e da ordem do mistério.
Demonstrei-lhe sensatez e que nada daquilo tinha abalado a minha confiança e o
meu interesse em conversar com ela. Eunice tinha saído da ilha durante algum
tempo e por isso queria saber como é que eu aguentava viver neste isolamento sem
asfixia ou limitações. “Nós sem querer
acabamos por viver sempre numa ilha”, aludiu para atestar o meu grau de
pureza insular. Falei-lhe do nosso programa pessoal de ir ao encontro de
pessoas que se encontram na mesma situação e que somos muitas vezes nós que
alimentamos e oxigenamos os nossos sentimentos com aqueles que se avizinham. Curioso, a Eunice, a mencionar a necessidade de passarmos um pano no
passado, de não sermos absurdamente exigentes e de fazermos um esforço por ter um caderno
de encargos compatível com quem nos rodeia, para além de não elevar o patamar de expectativas.
Eunice deu-me a entender que eu talvez fosse uma pessoa muito diferente dela,
demasiado ambicioso para os parâmetros dela e para as suas expectativas de
mulher ainda jovem. Eu fiquei a pensar que muito embora ela fosse uns anos
mais nova, dizia-me sempre coisas muita mais acertadas e muito mais interessantes
do que alguém da mesma idade que eu. Eunice e eu sabíamos o que era estarmos
enamorados por outras pessoas mas, porventura, muito mais do que paixão e amor
nós precisaríamos mesmo é de ter coisas em comum com o parceiro ou parceira que
arranjássemos. Eu sabia de antemão que, em primeiro lugar, não me coadunaria num ideal de parceiro para ela. Ela tinha uma teoria sobre quem escrevia e vendia os seus próprios textos. E por isso Eunice escrevia longos textos absorvendo com intensidade todos os pormenores e detalhes das histórias que eu lhe
contava. Pela primeira vez, vi Eunice preocupada com o meu bem-estar, dizendo que
eu não deveria fumar tanto nem ficar recluso tanto tempo em casa, que devia fazer as refeições a horas certas e que
devia tentar dormir pelo menos oito horas por dia, no fundo, ter juízo. O que seria da vida sem
literatura, redarguiu ao mesmo tempo que percebia o quanto ela necessitava de material, que era aquilo que eu me encontrava a fazer. Contou-me entrementes a relevância de viver
uma história com alguém do que não viver absolutamente nada porque se evita ou
se foge. Enunciei a Eunice que tinha vivido muito pouco histórias de amor,
ainda que me encontrasse desgastado e sem energia e que já não sabia como
libertar-me, nem como evadir-me do meu próprio programa em que me encontrava preso, por sinal, bem amarrado. Eunice transmitiu-me que ter uma relação com alguém tem que valer
a pena. E que para merecer ou encontrar alguém tinha que ser uma pessoa que fizesse
sobressair o melhor de cada um e que aceitasse o pior de nós. Eunice demonstrava-se desiludida por ainda existir o mito dos príncipes encantados. E que para que
isso acontecesse era necessário apagar o passado e estar predisposto e aberto a
que novas coisas pudessem acontecer. Eunice elogiava-me a minha capacidade de ser
livre pensador e a criatividade na execução de guias turísticos muito bem documentados. Mal ela sabia que eu admirava o que ela
escrevia e o quanto o que ela escrevia era relevante para a minha existência.
Chegou entretanto a melhor amiga de Eunice. Ela teve que se afastar e decidiu ir
embora. Só me restou dizer que tinha gostado muito de estar com ela, que
podíamos estar juntos mais vezes e que iria sair mais vezes ao fim da tarde
para ver se o acaso nos punha em sintonia com o mundo. O guia estava quase pronto mas eu não sabia como terminá-lo.
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