Fotografia de Tiago Rodrigues |
O sopro vital do mundo, a alma que faz correr o sangue,
estava desinteressadamente caótico e inquieto naquela noite de fim-de-semana,
daí o inevitável desassossego do dia seguinte. Ouçamos e falemos, portanto, de
música, a imperecível música, apesar do cansaço de que a música espalhada por
todo o lado possa ser sinal, esta continua a ecoar pelos quatro cantos da
cidade, em todos os dias da semana, rodopiando a nossa própria juventude tão
pouco académica, num cerimonial antigo devotado aos ritmos e aos sons. Houve
uma tarde que foi o Grândola do Zeca Afonso, a música senha para um futuro
diferente, num almoço sindicalista evocativo e memorial de uma bela ideia de
liberdade e de sentido colectivo. Depois, à noite, a Adriana Calcanhoto, a
cantora de Porto Alegre, cidade fundada por antigos açorianos, que tacteou
suavemente as cordas da guitarra, elevando a língua portuguesa ao alto da
memória, consumando entretanto a dolência nocturna, anestesiando um centro
congressos apinhado de casais e ouvintes curiosos. Nessa noite, em conversa com um
taxista, vem a confirmação que a única roulotte de comida fica em labiríntica
parte alta da cidade com festa estudantil a decorrer. Tempo, claro, para
dissipar a ossatura pelo rock dos The Doit, em versões bem tocadas com energia
e sentido de alinhamento. “A música põe-me a olhar para fora quando o que é
preciso é olhar para dentro” terá pensado aqui o escriba que, muito embora a
interrogação, prosseguisse na sua caminhada pela ilha carregada de bandas
sonoras. Entra-se deste modo no dia subsequente com a promessa de assistir a
mais uma noite de músicos e músicas em debate numa mostra denominada + Jazz,
desta feita no Auditório do Ramo Grande, com Daniela Silveira enquanto
anfitriã, mostra ilustrativa do Jazz enquanto género musical com raízes antigas
e alicerçadas pela ilha por onde passaram alemães, ingleses e franceses e,
obviamente, americanos. Ouviu-se e aprendeu-se muito com o fundador do Festival
AngraJazz, José Pinto Ribeiro, em discurso directo, a história do Jazz na Ilha
Terceira, o seu percurso e modus operandi na organização de um festival com
nome e pergaminhos. Autor de um programa semanal – existe há mais de vinte e um
anos, é feito por amor e carolice - intitulado “Os Sabores do Jazz”. Este é a
prova e razão de uma vida de dedicação e persistência nas andanças da
divulgação deste género musical. É muito curioso saber que neste festival já
tocaram Betty Carter, Frank Morgan (concerto histórico, afirma!), Kenny Barron,
Mark Murphy, Bernardo Sassetti e, surpresa muito grande, Esbjorn Svensson
Trio, agrupamento do pianista que amava o mar e que mergulhou de imediato na
Silveira aquando da sua chegada à Ilha Terceira. Lamentável como sempre, é o
próprio lamento, ou porque alguém é esquecido, ou por que julgamos merecer
muito mais do que aquilo que pensamos, ou por que gostaríamos que estivesse
mais gente a assistir ou que o desencanto instalado se apodere de nós, para além da ausência de
alguém em particular e de não se poder partilhar com elas tantas outras
estórias musicais e demais vivências. O que fazer? Talvez responder à pergunta:
se queremos que o jazz perca “a gravata e o convite” por que é que o encerramos
em grandes auditórios, ou lugares menos próprios para este ou, pior, em sessões de croquete e vernissage? Posteriormente à conversa-debate, estava agendada
um ensaio aberto ao público do agrupamento Bruno Walter and Friends que, pela
qualidade dos músicos e da interpretação musical, só teve a ganhar em força e
expressividade para o concerto do dia seguinte. No que ainda restou dessa
noite, soube-se que Kit tocou no Poliangra e ainda houve tempo para assistir
aos electrizantes R.A.M, na Semana Académica da UAç que, infelizmente, não
contou com o Jorge Palma, por razões que só o mau tempo e os aviões explicam. É
que a alma assim não sabe se aguenta, pensou novamente este escriba, perante tanta
música e tantos músicos, pois a alma são os ouvidos à escuta e os nossos ossos
sólidos percorrem e vagueiam a ilha em deriva musical, esperemos que sempre dotados de energia e mobilidade
por mais alguns anos de azul ferrete e verde campestre com os sentidos bem
despertos.