terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Uma Missiva no Dealbar de Dezembro

Alpes, 4 de Dezembro de 2013
Caro Doutor Mara,
         
 
         Ultrapassados os incidentes descritos na carta antecedente, encontro-me agora em convalescença num casebre isolado nas montanhas, que julgo não ser tão tenebroso como o imagino. E porque quando estamos descontentes com o mundo, estamo-lo sobretudo com nós próprios, forcei-me a um miserável isolamento para reflectir sobre acontecimentos. Encontrei porém nos últimos tempos uma escapatória através dos filmes. O cinema é um terraço com vista para o mundo, dá-nos instrumentos para manusearmos o lado fantasioso que nos habita, adormecido pelos atropelos da vida real. O problema é quando o cinema é real, como perceberá mais à frente.
O dia ontem foi de tempestade com neve, frio, relâmpagos, trovões e o mundo a desabar à minha volta. Perante esta espécie de holocausto, acendi a lareira, meti a tocar um disco de Vítor Espadinha, servi-me de Macieira, e pus-me a ver material de família. Comecei por um conjunto de fotografias antigas. Raramente as vejo e mostrá-las nem pensar, pois como sabe tenho uma família de trogloditas, todos eles com caras assustadoras. As minhas irmãs são horrendas e cadavéricas, por isso nunca casaram, e já nem recebem visitas em casa. Quando eu era pequeno, no quarto dos meus pais ouviam-se sempre gritos de manhã, quando acordavam e olhavam um para o outro, e eu quando nasci e olhei para eles, chorei durante um mês sem parar. Os meus tios eram todos iguais ao corcunda de Notre-Dame depois de um banho em ácido sulfúrico. Os meus primos são uma abstracção da natureza. Têm a cara cheia de borbulhas, os dentes encavalitados e saídos ao nível do nariz, reles bigodes de meios pelos, caras ovais e disformes pelas quais escorrem fios de azeite virgem, e os que ainda têm cabelo apresentam um tufo de pelos ríspido como um esfregão de palha de aço em forma de ninho. São assim os meus primos. As minhas primas são iguais, mas com patilhas, e uma delas tem mamas. Enfim meu caro Mara, não me querendo estender, um autêntico freak show. Felizmente eu sou o desvio à norma.
Mas voltando ao dia de ontem e a minha alusão inicial ao cinema: A minha família, como sabe, sempre teve dificuldades em se relacionar socialmente com outras famílias, pelo sentimento de repulsa que causavam. Por esta razão sempre se dedicaram a actividades caseiras, em clã. Era uma família unida pela feiura. Na década de 60, uma das actividades do meu pai e dos seus irmãos, então conhecidos como os “Irmãos Lumiar”, era o cinema. Filmavam e construíam enredos à volta de coisas simples e quotidianas, pois não se podiam afastar muito de casa. Descobri algumas dessas fitas, e trouxe-as comigo desde Vale Escabroso, a terra da minha família, para as visualizar estes dias. Descobri coisas impressionantes em filmagens caseiras. Mas a que mais lhe interessará, caro M, trato de descrever: Numa das fitas, há uma festa na nossa casa de família. Neste cenário tenebroso de grande alegria, observo no fundo da sala, o meu pai Agripino Alves, ainda solteiro na altura, num cenário de aceso romance com Violinda Manaia, a mais feia dos Manaias, filha do tenente coronel Augusto Manaia, e meia irmã de Vivaldo. São filmagens factuais, em formato documentário, e portanto reais. Depois de recorrer ao melhor grau de raciocínio, cheguei à conclusão que Faustino Manaia poderá ser meu meio irmão, tendo em conta a sua idade, e as notórias parecenças comigo. Sempre ouvi dizer que eu era a sua cara chapada, mas em versão bonita. E as peças encaixam-se, caro Mara. Estou em estado de choque, pois esta revelação, a confirmar-se, poderá deitar por terra toda a minha reputação.
            Por fim, e enquanto aguardo novidades do plano de Vivaldo por intermédio da sua pessoa, informo-o que lhe enviei um pequeno presente pelo correio. Uma embalagem com os melhores filetes de peixe alpinos, que concerteza farão as suas delícias nestas noites frias de inverno, e que se não forem comidos com alarvidade, poderão chegar até ao Natal.
Um fraterno abraço,
Janeiro Alves