sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Das Bicicletas


"Enquanto discípulo da energia respiratória, o ciclismo relaciona-se directamente com tudo o que existe em nós de verdadeiramente espiritual e espacial. Exigindo um equilíbrio físico e psíquico da concentração, a actividade motora repetitiva, contínua e profunda, funciona como uma equivalência física matizada do equilíbrio psíquico, da concentração, da harmonia e do ritmo de que falam inúmeros sistemas religiosos e filosóficos. Os mais antigos e os mais venerados destes sistemas pressupõe sempre que não se pode agir sobre o espírito sem se agir sobre o corpo.
Em resumo, a bicicleta pode representar, na longa história dos artefactos humanos, uma dos mais raros exemplos de uma interacção totalmente benéfica e ecologicamente irrepreensível entre tecnologia e arte, entre matéria e espírito. Se, como diz William Blake, a energia é uma fascinação perpétua, então a bicicleta é uma energia. Porque o facto de andarmos de maneira disciplinada numa bicicleta, que é leve e que tem várias velocidades, pode ser psicotrópico, pode mudar o nosso espírito e o nosso coração. Uma corrida prolongada e concentrada tem efeitos no modo de focalizarmos a percepção de definirmos os contornos, as cores e os sons do mundo físico. Andar de bicicleta é alargar  e intensificar o nosso campo visual. Esta espantosa invenção tem, de uma maneira muito simples, o poder de mudar a natureza da nossa relação com o mundo."
Peter Cummings, extraído de Bicycle Consciousness; poems and prose, antologia de textos, Relógio D´Água,2019.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Uma Missiva de Pré-Natal de Janeiro Alves

Caro Doutor Mara,
Abro aqui mais uma página da nossa já longa e solitária correspondência, com a mais profunda curiosidade em saber se ainda se encontra vivo, se ainda não foi raptado por traficantes de órgãos, ou adoptado por uma velha baronesa sedenta de diversão. Dados os últimos acontecimentos, temo ainda que tenha fugido para o Brasil ou que se encontre numa casa de saúde algures no meio da floresta Laurissilva (apenas por prudência). Apesar desta minha perversa curiosidade, mantenho a confiança de que o Doutor se mantém indexado aos cânones estabelecidos pela sociologia moderna, e que a sua farta cabeleira permanece bem armada, pois sei que nela guarda alguns objectos pessoais de valor inestimável e outros de uso mais diário.
Quero pô-lo ao corrente da vida de Lisboa, mas ficará para outra oportunidade, pois não me encontro lá. Estou neste momento no meio do pinhal, a respirar o ar puro e cristalino da natureza, e a grelhar umas salsichas tipo Frankfurt para o almoço. Perguntará nesta altura o Doutor Mara aos seus colegas de quarto: “o que estará Janeiro a fazer no meio do pinhal?”. Trata-se de uma desatenção da sua parte, caro Doutor. Acabei de lhe dizer que estou a grelhar salsichas para o almoço.
Mas o que o Doutor Mara não imagina, e que, se estiver acompanhado, encenará um enorme interesse em saber, é que decidi vender a minha sub-cave urbana e comprar uma autocaravana. Aventuro-me agora independente pelas sinuosas estradas do desconhecido, com dois faróis iluministas, uma cama, um frigorífico e um velho rádio a passar cassetes nostálgicas. Será neste escritório móvel e ao som de Swing e Yé-Yé que começarei em breve a redacção da minha nova obra – Compêndio Geral de Compêndios. Após este meu périplo por pinhais do interior de Portugal, conto chegar a Penedono pelo Natal, onde pretendo estacionar temporariamente para a tradicional celebração da época festiva. Para este ano conto assar meio cabrito. É neste ponto que justifico esta minha missiva. Quero convidar oficialmente o Doutor Mara para passar o dia de Natal com este seu velho amigo, e para me ajudar a comer os restos do cabrito da noite anterior. Obviamente que o repasto será bem regado com vinho a jarro de produção local, uma categoria.
Aguardo, portanto, o seu sinal relativamente a este convite. O sinal é de apenas 15 euros, e os restantes 25 euros poder-me-ão ser entregues em mão no dia do almoço.
Com elevadíssima estima e magnífica impressão,
Janeiro Alves

Devagar de Howard Barker

Teatro de Giz, Ilha do Faial

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Dos Casais

         "Há muitos casais que se destroem na filmografia de Bergman, é mesmo se calhar o tema mais presente em toda a sua obra, o desamor que sucede sempre à paixão, a amargura que a devoção deixa no peito, tema que dura mesmo até ao fim, a esse “Saraband” terminal com que, cinematograficamente, o realizador se despediu de nós em 2013. Mas nenhum tem a turbulência essencial que “Mónica…”ressuma, como um suor amargo na refrega das febres, materializando nesse plano último em que Harriet Andersson olha para a câmara, olha para nós, a interpelar as nossas convicções e juízos. Quando a vida é madrasta, por quem nos tomamos para nos pormos a fazer julgamentos?"
Jorge Leitão Ramos, in E, Revista do Expresso, 1 de Dezembro de 2018

É só inquietação...

José Mário Branco (1942-2019)

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Obrigado, Manuel Jorge Veloso! (1937-2019)

Manuel Jorge Veloso realizou a banda sonora do filme "Belarmino",
 de Fernando Lopes, 1964.

Do Sentido

      “Ter alguém à nossa espera é o único sentido da nossa existência. Alguém que te espera, que te quer bem, o amor é o único sentido da existência.

Manuel Villas, autor do livro Em Tudo Havia Beleza, ao entrevistador Luís Caetano, Antena 2.