"A única certeza que tenho é que o meu coração tem de se preparar para o que quer que aí venha. Hoje mais do que nunca é preciso cuidar da minha casa interior. Hoje mais do que nunca é preciso acordar com as andorinhas e esticar o corpo como os gatos para receber o dia. Caminhar pela casa e abrir as janelas. Lavar as mãos, o rosto e cantar mentalmente duas vezes parabéns. Ligar o rádio para ouvir as notícias da manhã. Abrir a porta do quintal para deixar entrar o cheiro do jasmin. Fazer o café, partir o pão e celebrar cada refeição do dia. Dar graças. Fazer as compras para quem precisa e caminhar pelos matos. Hoje mais do que nunca é preciso apanhar funcho, acelgas, mantrasto e, no regresso a casa, limpar, arrumar, lavar, deitar fora, organizar. Enfrentar o desorganizado escritório e arrumar os livros. Limpar o pó. Dividir autores, alfabetar, escrever, ler...reler. Descobrir o que nunca se leu. Esvaziar caixas. Arrumar estantes. Conseguir enganar o caos interior. Ser verbo e gerir esta inquietação surda."
Cristina Taquelim, in Diário da Quarentena, Jornal Público, 18 de Abril de 2020.