quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Missiva Breve a Janeiro Alves no Render do Verão

Caro Janeiro Alves,

Escrevo-lhe no render do Verão e, queira o meu mui nobre amigo acreditar, só agora decido sair destes aposentos em que me encontro. Estive, assim, durante toda a canícula recluso, a maior parte do tempo à sombra, aproveitando para recuperar forças entre outras coisas que entretanto se encontravam ocultas. Acredite, um Agosto inteirinho dedicado à penumbra e à avassaladora quietude.
Estive, por isso, afastado da regeneração urbana em curso, longe dos ruídos das betoneiras e dos caterpílares e, por isso, nem fui capaz de verificar com os meus próprios olhos como se encontram os contentores do lixo com o aumento da população em redor. Estou, como deve calcular, ávido de novidades e convicções que este mundo contemporâneo nos queira oferecer de mão beijada. Devido a esse facto, acabo de sair para dar um mergulho num conjunto de praias que me são familiares: São Roque, Pópulo e das Milícias, Água de Alto, Vinha da Areia e Amora.
Sendo assim, despeço-me alegremente deste estio ao mesmo tempo que aproveitei para comprar um par de óculos escuros de marca que estavam em promoção pois ainda ninguém tem a certeza até quando teremos a presença do rei Sol. Quanto a refrescos continuo fielmente a optar pelo “sumo de lúpulo e cereais maltados” que as entidades locais se orgulham, e bem, em produzir. No entanto e, enquanto julgo durar a renda deste moinho alugado, tenciono rever um pequeno ciclo de cinema italiano da restauração e cujas lembranças subsistem na minha memória. Agora e, talvez porque acabo de partir o eixo da bicicleta que me transportava na via pública, começarei pelo “Ladri di Biciclette”, de Vittorio de Sica, seguindo-se o “Il Vitelloni” do Federico Fellini e, por fim, irei ver “Il Sorpasso” de Dino Risi. A vantagem dum ciclo caseiro é que podemos parar o DVD, voltar atrás, beber mais uma “mosca”, tirar algumas notas e prosseguir a reflexão fílmica em curso.
Aproveito, entretanto, para augurar ao meu amigo Janeiro, um bom regresso à antiga capital do império e faça de conta que aquilo que ouve é a língua dos seus compatriotas  tal qual os táxis que avista continuam a ostentar o preto nas portas e o verde no tecto. Por fim, caso possa, beba um verde tinto e coma um pastel de bacalhau em honra deste seu amigo que fica a aguardar as suas notícias que, ao que julgo e desconfio, devem ser frescas e boas.

Com o respectivo abraço e elevada estima que nutro por si,
seu amigo eterno

Doutor Mara

Voz de Veludo

Daqui:http://www.4ad.com
“I was gifted at the music
I was born the day the year was new
Someone has stolen all the water
I keep the pills inside an urn”

Aldous Harding, Stop Your Tears, 2014

O que impressiona nesta voz modelada, cavada, quase inspirada e que quase se perde na respiração é que nos parece assustadoramente sincera. Aldous Harding nasceu em 1990 numa pequena cidade, Lyttelton, na longínqua Nova Zelândia. Crescida no interior de uma família de músicos, a sua mãe é Lorina Harding, com larga tradição de cantores, e que terá sido descoberta pela produtora Anika Moa. A edição deste seu segundo disco, intitulado “Party”, pertence à mítica 4AD, depois da cantora ter sido representada em nome próprio pelas” Flying Nun Records” e “Lyttelton Records” no seu primeiro disco. O registo, sentido e melancólico, mantém-se.
A cantora que, ao que tudo indica foi descoberta a cantar nas ruas,  autodenomina-se de gótica e folk. O que é um facto que estamos na presença de uma exímia escritora de canções com apenas dois álbuns, tendo já colaborado com uma plêiade considerável de músicos: John Parish, Mike Hadreas, Marlon Williams e  Fenne Lily, entre outros.

Ontem, escrito numa parede da cidade

Tu fizeste-me descrer na humanidade

Seria o Amor Português

Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
— tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

Nada me importa; mas tu enfim me importas.
Importa, por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.
Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
«Que me importa que batam à porta...»
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.

Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhãs
e lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.

Que me importa, agora que me importas,
que batam, se não és tu, à porta?

Fernando Assis Pacheco, in “A Musa Irregular”, Assírio & Alvim, Novembro de 2006  

Um Verso de Joaquim Castro Caldas

num desses países onde se esquecem de nós para sempre