quarta-feira, 27 de julho de 2016

A Cultura e o Quotidiano

     
Programação do Centro Mário Dioníso - Casa da Achada
 Sabe-se que hoje a "cultura" fica bem a qualquer autarquia e hoje não há nenhuma que não ostente o seu festival musical, o seu encontro literário, a sua exposição ou vernissage. Assim a cultura, tal como a antiga, mas sempre actual, pasta dentífrica "Couto", anda na boca de toda a gente. Muitos de nós somos consumidores ocasionais de bens culturais, a maior parte das vezes esses “bens” são provenientes de culturas exteriores à nossa. Nada contra. Há, portanto, muito a fazer para promover novos produtores de cultura, ainda que de cariz universal, incentivar e encorajar os criadores e agentes culturais a apresentar os seus próprios “objectos” artísticos, estabelecer redes de programação e formação de públicos. Na verdade, sabe-se que há tanto por fazer e que o tempo vai passando, adiando o muito que há para concretizar, na maior parte das vezes, só lá para depois das eleições.
                     A título de exemplo, recordo que sempre que fui ao Centro Mário Dionísio - Casa da Achada, em Lisboa, fiquei sempre com vontade de lá voltar. Por ali não entendem a cultura como um luxo supérfluo ou mesmo flor na lapela. Acreditam, isso sim e, sem fazer grande alarido disso, que esta mesma é parte integrante do desenvolvimento pessoal, que aquele espaço pode ser de partilha, de descoberta e, inclusive, de crescimento e realização comunitária. Todos os dias há actividades a decorrer, sinal de quem vive a vida de forma crítica, atenta e apaixonada. Não evitam, mesmo assim, o conflito, o debate, a aprendizagem. Mesmo agora, enquanto escrevo este pequeno texto, atento à experiência de três amigos – um deles de visita turística aos Açores e a São Miguel, e que frequentaram o interior de um edifício majestático e de rara beleza: o “Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas”. Um centro feito supostamente para albergar as artes deste tempo, com uma colecção privada de arte contemporânea, encontrando-se, em plena época alta do turismo e dos visitantes à Ilha, com as salas e paredes vazias e ainda com uma livraria exânime. Caso para dizer, que a cultura, ou até mesmo a arte, por vezes, pode estar onde menos se espera.

Uma Missiva de Janeiro Alves no Jorro de Julho

Caro Doutor Mara,

Tenho estado envolvido nos meus estudos psico-sociais numa floresta tropical tasmânica que plantei meticulosamente no jardim da minha vivenda. Se excluirmos os dias de puro ócio com festas de Black Captain Morgan e mulatas ao som de Trio Matamoros, têm sido dias árduos de trabalho e isolamento, sangue suor e lágrimas imprimidas pela sede do conhecimento humano e da descoberta científica ao serviço da humanidade.
Tudo estava bem, até que num dia comum, longe das luzes dos holofotes mediáticos da sociedade de consumo, recebi uma carta oficial registada e com aviso de recepção, para me apresentar para interrogatório num palácio governamental em Lisboa. Lá, perante três vultos medalhados, tive de responder a algumas perguntas de índole pessoal. Perguntaram-me porque não tinha facebook, porque é que não via televisão, se sabia dos atentados, e se sabia que Portugal tinha sido campeão da europa. Afirmei que estava ocupado com outras coisas, o que provocou a ira dos presentes. Disseram-me que fazia parte dos deveres do cidadão estar atento, participar em comentários online, ver telejornais para ter opinião formada, e participar em redes sociais, pois caso contrário a minha pessoa poderia estar em perigo e constituir perigo para os outros por desconhecer procedimentos de segurança por parte das autoridades, caso eles venham a ser implementados em estado de emergência. Entregaram-me um papel carimbado e assinado pelo estado-maior e fui de imediato escoltado por outros dois vultos até ao portão.
A carta catalogava-me como “Excluído”, referindo que constituía uma ameaça ao interesse nacional pelo alheamento voluntário dos cenários de terror e flagelo na europa, e sobretudo, “pela ausência de medo”! Mas a carta não se ficava por aqui. Referia também a obrigação de frequentar aulas de formação em determinados dias da semana, em determinado edifício da cidade, a uma determinada hora. Apesar da obrigação, fui de livre vontade, pois achei que desta forma contrariava o carácter obrigatório da convocatória.
Numa sala impessoal e desprovida de cor, num sétimo andar de um edifício cinza uniforme espelhado num dos lados e dotado de câmaras de vigilância da marca “sorria”, lá me sentei numa cadeira azul, cor de lápis. Depois de uma breve apresentação por parte do formador, que trouxe uma folha já escrita e até leu o seu próprio nome, a luz baixou e o projector ligou-se. O que se passou a seguir, Dr. Mara, foi um espectáculo de manipulação, com imagens de noticiários do correio da manhã sobre os atentados, a exaltação orgulho nacional no campeonato europeu, as sanções da união europeia, e até, imagine-se, uma reportagem da gnr sobre os perigos de caçar pokemones na via pública. No final tive de preencher um formulário - Filiação Partidária: sou de um partido estrangeiro que não há cá; Orientação Sexual: ultimamente não me tenho orientado muito, ando ocupado com outras coisas; Conta de Facebook: não tenho mas mantenho os álbuns de fotografias de família; Remuneração Mensal: não aplicável. Recebo à semana; Tem filhos? devo ter alguns, espalhados por África; Situação Militar: acho que está cada vez pior…
Bom, neste momento tenho a casa escoltada pela polícia, e apareceram-me dívidas imaginárias nas finanças e na segurança social. Caso o Dr. Mara ainda não tenha percebido, estão-me a querer fazer a folha, meu caro. Estas cartas ainda escapam ao controle porque são levadas ao correio pela minha governanta, mas receio que mais cedo ou mais tarde sejam interceptadas.
Preciso da sua douta opinião em relação a este assunto, pois ecoa por parte dos alinhados que poderei estar em maus lençóis. Já pensei em pedir asilo político, mas ainda estou a escolher um país que melhor se adapte ao carácter exótico da minha personalidade.
Aguardo assim que me garanta que desse lado do oceano as águas estão mais brandas, condição necessária para despoletar na sua consciência a voluntariosa necessidade de dar uma mão a este velho amigo que lhe envia sinceros cumprimentos.
Janeiro Alves

Ontem, escrito numa parede da cidade

A minha vida não é isto!