segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

A Quatro Mãos


                               “Mas de repente dou por mim a olhar para o nosso quintalinho literário e a perguntar-me: que se passa? Os escritores não precisam de estímulos? A realidade, agora a cores, basta-lhe? É ela o grande ópio? Quase tudo sóbrio e a trabalhar por obrigação. Acabaram-se os O´Neill e os Pachecos (o Luís e o Assis), os cafés e as tertúlias de onde se saía, ou de gatas ou com a cabeça cheia de ideias para escrever, ou as duas coisas juntas. Grande parte da literatura caiu nas malhas de uma triste engrenagem comercial que se julga alegre e viva, mas é cinzenta e igual. Ninguém arrisca uma gargalhada forte, satírica (Júlio Conrado acaba de dar uma, mas a gargalhada ressentida também não é sadia), a poesia anda melancólica, a prosa vive de memórias, o ensaio, depois do vigor do Eduardo Lourenço, academizou-se (e por mim falo). Falta-nos seiva (vamos buscá-la, de vez em quando, aos livros de Maria Gabriela Llansol), falta-nos a verve visceral, o humor certeiro – sempre vamos lendo o “Fora de Mercado” do Jorge (Silva Melo). A literatura que se faz será séria, sólida e serena, mas raramente nos desafia ou faz estremecer. Está a ficar frouxa. É dos tempos. (…) A escrita profissionalizou-se, é o que é, - hoje, todos temos que ser “profissionais” sem professar coisa nem causa nenhuma. E por muito que muitos continuem a dizer em entrevistas que escrever é “uma necessidade” (Necessidade? Ah, a língua portuguesa, tão traiçoeira, e tão poucos a servir-se disso, a fazer desta necessidade uma virtude!), os resultados raramente convencem.”
João Barrento, in “A Quatro Mãos”, Público, 28 de Julho de 2001.

Andar nas Nuvens

Levanta apenas a cabeça
E é o mundo a extensão do mundo
Repousem sombrios nas mãos
São esses os frutos aéreos
Respiram em ti
Na profusão da terra

Um dia inteiro sustenta os olhos
Afunda as figuras que adivinhas
Tanto persistem, sempre mais revoltas

Onde adormeces quando partes?
Abraçar o tempo, andar nas nuvens.

José Manuel Teixeira da Silva, in Música de Anónimo, edição da Companhia das Ilhas.