sexta-feira, 22 de abril de 2016

Carta a Janeiro Alves num Outro Abril

Caro Janeiro Alves,

Acredito que talvez pudesse haver outro destino para cada um nós mas sei agora que isso não foi possível. Os tempos, definitivamente, mudaram. Soube há dias que Janeiro Alves mandou retirar as obras de arte da Galeria onde a nossa amiga comum, Miriam Manaia, se encontrava a expor. Dizem as línguas pérfidas e fétidas que tudo ocorreu quando o amigo Janeiro ouviu pronunciar sob a forma de eco os termos “curadoria” e “curador”. O amigo Janeiro pensou que vinha a caminho um mestre de feitiços e magia negra e, muito antes que ele desatasse a incendiar tudo o que visse, decidiu esconder e proteger as respectivas obras de arte. Dado que estamos na presença de obras bastante valiosas, o amigo Janeiro tratou imediatamente de acautelar o seu futuro e a velhice, ficando assim na posse da obra mais cotada da exposição: “Peregrinos Contemporâneos”, que se encontra já na sua posse numa cave da capital, onde vai semanalmente pôr o colesterol em ordem com um queijo limiano.
Como eu o compreendo, meu caro amigo, todos gostaríamos de ter uma velhice sossegada. Quem sabe: um país de corais e tesouros ao virar da esquina? Uma vasta planície de Camélias Sinensis na Primavera, eu sei lá?  Acredito, isso sim, que talvez pudesse ser melhor o nosso presente. Muito melhor, certamente. Tudo menos este navio que vemos diariamente em plano inclinado. Há muito afundado por ganchos refinados de piratas que agora também escrevem papéis no Hemisfério sul. Sabe, tanto como eu, que sempre que abrimos a goela para esta proferir um testemunho de esperança, cai-nos de súbito uma pevide na garganta. Por isso, demora tanto para que a semente germine e dê flor. Consola-nos, portanto, ter amigos que passam o dia inteiro à beira-mar especados. As lembranças de gente até aos corredores na casa dos pais em dia de aniversário, ou quando tínhamos avós com relógios-bússola ou mapas imaginários. Ou ainda aquele tio que esteve no Ultramar e que agora é perito em filatelia, silvicultura e monocastas.
Acredito sinceramente que talvez um dia nos devolvam o êxtase de andar por aqui. Aquele eterno orgasmo patriótico, o sorriso cândido e gentil das raparigas quando passam ou simplesmente o odor das castanhas quentes no frio de Novembro. O que é um facto é que talvez pudesse haver outro destino para cada um nós. Talvez, mas por agora o que me ocorre é simplesmente comer os filetes de peixe que se encontram neste tupperware que o meu querido amigo enviou recentemente.
  
Com elevada estima e consideração,

Doutor Mara