Não tenho o privilégio de me dirigir ao meu ilustre amigo desde o tempo do nevoeiro, quando deambulávamos pela noite de Ponta Delgada a observar a movida e parávamos nas tascas, onde, entre sandes de atum e vinho de dois euros, mudávamos o mundo e a cultura e cortávamos na casaca dos arcebispos. Agora estou refugiado no palacete do Livramento onde entardeço o sonoro regresso arrulhado das rolas aos ninhos que construíram nas yucas do quintal. Estas columbiformes do género Streptopelia são aves ditas territoriais na época do acasalamento, mas eu ainda consigo ouvir os outros pássaros.
Às Quintas pego na cesta (…) dos
livros e rumo à nossa tasquinha da Rua de Lisboa. Digo nossa, porque lá
passámos bons momentos e, estou certo, havemos de passar muitos mais. Continuam
a surgir espontâneos diseurs, bardos, poetas malditos e alguma fauna
subterrânea do bas-fond pontadelgadense. Mas não é para falar da minha rotina
nem das nossas memórias conjuntas que lhe escrevo estas palavras no meu teclado
Bluetooth. O assunto desta narrativa electrónico-espitolar tem a ver com a
publicação em certa revista literária, da troca de correspondência entre o meu
ilustre companheiro e esse outro compagnon de route, o nosso, não menos
ilustre, Janeiro Alves. Ora, na dita revista, são revelados segredos que deitam
por terra a aura romântica da superidentidade dos meus excelsos amigos.
Imagine, caro Doutor Mara, se o Super-Homem revelasse a Metrópolis que não era
mais que o modesto Clark Kent jornalista do "Daily Planet" ou que o Batman
revelasse que na realidade era Bruce Wayne, o milionário de Gotham. Era um
desastre para Humanidade. E para que não restem dúvidas, não sou o único a
insurgir-me contra esta escorregadela identitária. Há dias em conversa com o
nosso amigo comum, o senhor Arq. A., portuense ilustre, que escolheu uma das
ilhas de baixo para viver e trabalhar, bem o ouvi insurgir-se com esta
aguilhada no mito, este levantar do véu da lenda.
Saiba o meu amigo que as
consequências podem ser demolidoras. Espero, a bem da reputação dos meus
amigos, que os leitores da revista sejam discretos.
O seu sempre amigo
JB Malaca
(arq. Naturalista Pós Graduado em Geografias
Oníricas)