sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Os jornais, os jornais...


            Há hábitos que não mudam, perduram inexoravelmente  ao longo do tempo e há qualquer coisa na rotina destes hábitos que que só um viciado em informação e notícias compreende. É verdade que hoje há internet e computadores por todo o lado, há jornais online de todo o mundo disponíveis num abrir e fechar de olhos, mas há  também hábitos  antigos que são difíceis de abandonar. Difícil será assim desistir desse velho costume diário de sair de casa para adquirir um jornal ou lê-lo em algum café ou esplanada,  essa compra implica a procura do seu local de venda em determinado lugar da cidade, essa rotina repetitiva de que só uma grande paixão abarca, e que obriga ao movimento e exercício de um determinado ritual que permanece e vai resistindo ao longo de tanto tempo. Dessa deslocação até ao local de compra, guarda-se o gesto de receber o jornal ainda com a tinta pela manhã, a cumplicidade de  pagar a respectiva quantia ao vendedor, receber o troco e ser reconhecido como sendo leitor de um determinado veículo de opinião, ainda constatar a facilidade em reconhecer outros companheiros dessa aventura quotidiana ou semanal. Os dias são perfeitos até que um dia na esplanada ou no interior do café se detecte a ausência do suplemento que devia constar no interior do jornal…até parece que o dia fica, irremediavelmente, perdido! Houve tempos em que o "Independente" e as tardes de sexta-feira eram sinónimo de enorme curiosidade, alegria, liberdade e discussão no antigo café Diana Bar, hoje Biblioteca de Praia. Ali eram tardes inteiras a estudar e a ler os jornais e seus suplementos com a janela virada para o mar. Sim, o "Independente"  era a garantia de uma tarde de leitura animada e bem passada junto do mar em conversa com os amigos que iam chegando com novidades até à hora do jantar. Havia, entretanto, outros momentos, só que mais esporádicos e ocasionais  desse contacto com outros órgãos da imprensa escrita mais politizada, e que eram à altura, também eles, instigadores de tertúlia e conversa à volta das mesas. Havia a Politika, criação do Miguel Portas enquanto andou pelo PCP, o Combate, mensário do PSR (Partido Socialista Revolucionário) onde se lia a Eduarda Dionísio e o João Martins Pereira  e, um pouco mais tarde, a revista , onde se lia e debatiam as crónicas apaixonadas e apaixonantes do Paulo Varela Gomes. O Público é hoje o reservatório dessa resistência de um jornalismo lido fora de portas, muito devido aos seus jornalistas e às crónicas da Alexandra Lucas Coelho, Paulo Varela Gomes (outra vez!) e  o Rui Cardoso Martins. É ainda através deste jornal que ficamos a saber sobre os novos temas ao piano do João Paulo Esteves da Silva, bem como do seu último concerto no CCB, ou que a animação "Kali, o Pequeno Vampiro", de Regina Pessoa, é candidato aos Annies Awards.

Abstenção de Cinema

  "Ando cumprindo mal meus deveres de cronista. Não está certo, não, Vinicius de Moraes. O público te paga para escrever, e você , em vez, fica a andar de bicicleta com o Rubem Braga pelas praias do Leblon ou a roer a sua solidão nos bares de Capabana, ingerindo chopes, além de tudo uma coisa que não pode fazer bem à colite.  Você vai num mau caminho, rapaz. Você devia era entrar no cinema e ir ver Shirley Temple - mas como dói! Anteontem, passando em frente ao Rian, você teve mentalmente o seguinte comentário diante do cartaz: "Casei-me com um nazista".«Quem mandou...Nada disso está certo. Você é um rapaz de responsabilidade, com dois filhos, uma bela carreira na sua frente, talvez até com um ou mais um ou dois livros a escrever. Você devia acordar mais cedo, olhar a aurora nascer, encher os pulmões da salsa brisa atlântica, fazer uma hora de ginástica, tomar um banho frio e escrever um poema sobre a eugenia. Mas, não. Há uma semana que você não vai ao cinema. Olhe que você com essa sua abstenção pode ter feito mal a algum fiel leitor seu - esse desconhecido... que, por incauto, e sem a sua rija orientação cinematográfica, se deixasse seduzir  pela burrice dos cartazes, e...mais uma alma no inferno do cinema...
O médico em você se rebela contra essas surtidas dos monstros, Vinicius de Moraes. Ouve a voz que te conclama ao sereno e imparcial  cumprimento do dever. Fecha os olhos, vai ao cinema. Ingere Shirley Temple e outras adolescências geniais como ingerias o teu óleo de rícino na infância, ministrado pela mão mussoliniana de tua tia. O público assim o quer. Deixa de hipocondrias. Sê cronista. Vence a sedução da máquina  e o canto da sereia de Rubem Braga. Atira-te à confecção de jóias de bom gosto cinematográfico, pipocando em conceitos do mais alto interesse artístico, e larga essa mania de querer andar sem mãos e quem sabe  - ó sonho! - de costas para a frente, na bicicleta. Ainda domingo passado pagaste quarenta cruzeiros ao garajista. Está louco, rapaz, com o quilo de carne a três cruzeiros e sessenta centavos?
      Não está certo, não, Vinicius de Moraes. É preciso comer cenouras, tomar pelo menos meio litro de leite por dia - e não uma uma bagaceirinha ou outra, está ouvindo? - ir ao cinema e depois meditar uma boa crónica ante um chá  com waffle and mapple numa das cadeiras da Americana, entre senhoras abastadas - e não chope, está ouvindo?, que é uma coisa que encharca o estômago e não nutre nada...(Mas, afinal de contas, esse negócio de cevada é ou não é batata?)"

Vinicius de Moraes, in Manhã, 23 de Fevereiro de 1943