“Os
outros povos do planeta consideram a bicicleta um aparelho destinado ao jogo e
ao desporto. Permite uma velocidade extraordinária com meios simples, exige
algum esforço e, ao mesmo tempo, o seu uso implica um certo risco. Todas estas
características confinam o velocípede ao âmbito das actividades desportivas e,
entre elas, às que requerem juventude.
Apesar disso, verificamos que por todo o lado aumenta o
seu uso em serviços meramente úteis. O operário que vive em distantes subúrbios
vai para o trabalho e regressa dele de bicicleta. O distribuidor de certo tipo
de mercadorias e o estafeta também recorrem a ela. Mas é precisamente esta
generalização utilitária, que por todo o lado se verifica, que sublinha a
consciência predominante de que não é esse o adequado objectivo da bicicleta,
mas outro. Isso é sublinhado pelo facto de este aproveitamento secundário está
reduzido ao estritamente inevitável: só a ele se recorre quando não há outro
remédio ou quando a hulmidade dos meios económicos o impõe como uma triste
necessidade. É por isso que não estranhamos: o operário mal vestido que pedala
para ir para casa proclama tacitamente que preferia outro meio transporte e que
usa esse precisamente não por ser o desejável mas por uma triste imposição. E
com isso fica resolvida a incongruência, vemo-la explicada e não sentimos
estranheza.
Mas na Holanda toda a gente anda de bicicleta, qualquer
que seja a sua idade, sexo, volume, posses. E agita as pernas sobre pedais, ia
dizer que cinicamente, isto é, como se fosse a coisa mais natural do mundo,
como se fosse o que é preciso fazer. Pois bem, é isso que irrita o viajante,
que causa estranheza e incompreensão: considerar-se natural e perfeito o que
lhe parece inadequado e erróneo.
Ao chegar aqui, o nosso intelecto, lutando
dialecticamente consigo mesmo, faz a seguinte objecção: não será que considero
natural e correcto simplesmente o que me é habitual, o que vi noutros povos?
Porque não há-de ser a Holanda o povo eleito pelo deus das bicicletas, aquele a
quem foi revelado o seu mais autêntico destino.”
Ortega y Gasset in
“De Bicicleta – Antologia de Textos”, Relógio D´Água, 2018.