Final de Novembro, fim de
semana, ilha de São Miguel. Dias marcados por temperaturas amenas e algumas nuvens, permitindo-se, por vezes, a alguns
aguaceiros. Nada de muita monta, nada que estrague o tecido capilar. O fim de semana está aí e com ele o tempo livre
para espreitar a programação dita cultural. Há teatro no Ribeiragrandense (que
teatro tão lindo!) e ainda há filme português premiado no Cineteatro Lagoense. Que
surpresa maravilhosa, estas propostas. A data do aparecimento destas duas salas remonta ao
início do século XX, as mais antigas da ilha de São Miguel, porventura, ainda a dar o melhor de si, um século depois. Que força do passado podemos agora presenciar!
Comecemos pela noite de sexta-feira,
o cardápio sugere a peça “A Descoberta das Américas”, solo-monólogo do experientíssimo
actor-formador Júlio Adrião, oriundo da cidade do Rio de Janeiro, no Brasil. Uma experiência teatral que ficará na memória durante
os próximos anos, um expoente maior do uso da língua portuguesa em palco. Um verdadeiro encontro entre povos e a força do antigo colonizador e colonizado. São cerca de oitenta minutos, com o actor sozinho em palco, num diálogo com o narrador e com o personagem, fazendo pausas e sons da própria narrativa, com repetições hilariantes, obrigando-se,
assim, a um exercício físico imparável com
toda aquela carga simbólica do português do Brasil e do castelhano que vai usando aqui
e ali. Uma delícia! Espectáculo ganho, parabéns ao Festival POP, pela ousadia e pelo facto de
ter sido na Ribeira Grande, lugar duns poucos que acreditam que as Artes
de Talma pode fazer a diferença e que vaticina o quão faz falta esta arte e do que esta terá de trilhar em todos os lugares da ilha.
E depois, há cinema português com projecção em sala (quem diria?), desta vez num sábado outonal e solarengo, a meio da tarde, ali estava a sala do Cineteatro Lagoense com “Great
Yarmouth - Provisional Figures", filme de Marco Martins de 2022. Sessão que contou com apenas quatro pessoas no público, provalvemente com divulgação
reduzida ou fraco investimento institucional. Num tempo de mentiras, a ausência de pessoas na assistência serve apenas para adensar e justificar o discurso rancoroso aos que mudam de
lugar, aos que arriscam um futuro diferente noutras paragens. De que serve um ciclo dedicado aos migrantes, aos que entram e partem, aqueles que pretendem melhorar as suas vidas noutros sítios que não os locais de origem,
se depois, quotidianamente, não celebramos e honramos a sua façanha, se continuamos a não valorizar o seu gesto, se não presenciamos este encontro com a sétima arte? “Great Yarmouth - Provisional Figures" é um libelo cinematrográfico duro, intenso, marcado
por uma actriz em estado de graça – Beatriz Batarda. E que força tem esta
Beatriz, que vive e revive, porta-bandeira daquela comiunidade em desespero, filmada até à exaustão no seu mosaico de acres e álgicos sentimentos. Filme que nos perturba e assombra sem deixar de ser belo e poético! Que fim de semana artístico pleno de arte e beleza nos palcos e écrans! Um bem haja aos que o tornaram possível!