Espero que esta carta lhe possa fornecer uma ideia concisa
e rejuvenescida do quotidiano deste velho amigo na metrópole, agora dedicado ao
comércio e indústria, obviamente na óptica do observador. Há muito que o Dr.
Mara não dá notícias, pelo que certamente deve estar a preparar alguma. Todo
este silêncio que o envolve cheira-me a esturro, a madeira queimada em tempo de
chuva, fazendo antever que algum efeito pirotécnico está a ser preparado no seu
laboratório das coisas do pensamento, e concerteza não será a pensar nos
encontros da filosofia. Mas sei que me porá ao corrente, poupando-me à despesa
de ir ao seu encontro almoçar os habituais filetes de peixe.
Posto isto, não tenho mais nada de relevante para lhe
dizer, à excepção de pequenos acontecimentos, tão pequenos que apenas todos
juntos poderão dar algum vislumbre das mudanças que o tempo e o espaço operam
em nós.
Um dos acontecimentos recentes foi o de combinar um
encontro com um mestre em artes marciais debaixo duma varanda de um edifício
antigo numa das ruas movimentadas da cidade para uma conversa séria, e tudo o
que então se desenrolou. Eis que ao passar na zona baixa da cidade para cortar
caminho, um pombo capitalista defecou categoricamente em cima do meu fato de
asas de grilo, o que me levou ao cancelamento imediato do referido encontro por
telefone. Não se podem ter conversas sérias com o fato sujo de merda. Então, na
precisa hora em que supostamente nos encontraríamos, a varanda colapsou. O
pombo, que na altura foi rigorosamente insultado, acabou por me salvar a vida.
Este singelo porém revelador episódio ocupou-me o pensamento por uns dias,
levando-me a concluir que não existem acasos, e que por detrás de um facto
negativo poderá estar algo de bom. É necessário tempo e dedicação, caro Doutor,
para compreendermos a importância dos pequenos acontecimentos. No dia seguinte
comprei um pombal para o meu pequeno quintal das traseiras, onde actualmente
alimento e educo 88 bonitos e felpudos pombos. Dou-lhes uma alimentação
equilibrada, e se continuarem a crescer assim saudáveis, vou transformá-los em
pombos-correio. Espero no ano que vem ter dez mil pombos-correio prontos a voar
pela cidade e espalhar mensagens de bom humor por toda a gente, como quem dá
milho aos pombos, mas de forma invertida. Espero ver resultados dentro de dois
anos, onde quero chegar ao milhão de pombos, e estender o seu raio de acção por
todo o país. Será uma revolução sem precedentes em matéria de sorrisos. Isto
digo-lhe eu, Dr. Mara, que não sou nenhum especialista, apenas um observador
deste tipo de fenómenos.
Outro pequeno acontecimento destes últimos dias poderia ser
apelidado de incidente, mas eu prefiro dizer tratar-se de um insólito. Andava
eu a passear pelo Rossio, quando avisto uma girafa, a comer as folhas de uma
árvore junto a uma esplanada conhecida e famosa ao mesmo tempo. Mas isto não
constitui a parte insólita da história. Curiosamente nenhum dos transeuntes deu
especial atenção a este fenómeno animal, e nem os nipónicos de férias invernais
dirigiram as suas câmeras para este acontecimento. Isto preocupou-me, como pode
imaginar, pois por momentos, breves, pensei que podia não estar no meu juízo
perfeito. Felizmente, em certa altura um empregado do estabelecimento levou
numa bandeja um pastel de nata ao animal, fornecendo-me todas as garantias
testemunhais de a girafa era de facto real. Depois imaginei que caso a minha
imaginação gerasse ali um animal ilusório, mais facilmente geraria um empregado
entregando-lhe um pastel de nata. Mas não me alonguei neste pensamento, pois
tinha coisas combinadas à porta do jardim zoológico em Sete Rios.
Por fim, e para o Dr. Mara fazer uma pequena ideia de como
é vibrante e surpreendente a vida na cidade, fiz algumas anotações que partilho
consigo: “Os dias são de sol, as fachadas renovam-se e as pessoas vestem roupas
leves e esvoaçantes. A rua está cheia de saltimbancos, fadistas, retratistas,
proxenetas e transformistas. Há turistas vindos de outros países, e até de
outros planetas. Tocam as cornetas e a banda passa, os comerciantes esfregam as
mãos com o dinheirinho a entrar e os empresários confiantes com o que se está a
passar. A festa já começou, e desde que a agonia acabou, são palhaços,
malabaristas, e tudo o que é artista. São famílias inteiras, repartidas,
repatriadas, repetidas e recuperadas. São lojas e luzes e cafés e fogo de
artifício. São as meninas a crescer e os meninos a aprender. Os velhos já
largaram as bengalas e dançam canções revivalistas. Está bom é para os
carteiristas e artistas de variedades. É uma feira de vaidades e de quezílias
bairristas, cada um a puxar a brasa à sua sardinha, e é bonito o Verão que se
avizinha.”
E por aqui me fico Caro Dr. Mara. Para esta Páscoa,
sugiro-lhe um bom bacalhau Pascoal em posta, adquirido em local apropriado, e
devidamente confeccionado, para desenjoar dos filetes.
Janeiro Alves