terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Última Troca Epistolar com Janeiro Alves (até para o ano em Fevereiro)

Ilustração de Pedro Valim
Solar dos Manaias, PDL, 31 de Dezembro de 2013

Caro Amigo Janeiro,

                  Respondo-lhe de imediato pois perdi mais uma sebenta onde vou apontado tudo o que me acontece durante estes dias em que estou adunado a Miriam Manaia. Estou certo que ela se encontra a viver um bom momento da sua existência, assisto ao seu dinamismo e vejo-a muita atenta a todos os movimentos em redor. Suspeito, no entanto, que não é só à minha pessoa que Miriam disponibiliza os seus sorrisos e esgares, já que ultimamente só lhe ponho a vista em cima nos jantares de fim de semana ou quando há algum evento literário em que necessita da minha companhia. Já lá vão os tempos em que subia a rua do Colégio ao fim da tarde com o  braço dado a Miriam Manaia, a mais bela e inteligente dos Manos Manaia.
      Tento, por isso, não me tornar muito ocioso com este tempo livre facultado pelo recente desapego de Miriam ou  de ficar muito obcecado com a ausência desta misteriosa mulher, continuando desta maneira a escrever nos meus canhenhos bem como observando a natureza e geografia em redor, que como bem sabe, é rica em diversidade e tonalidades de verde. O meu amigo sabe certamente que o ócio era o nome que os gregos davam à escola, ao tempo de reflexão e aprendizagem, e que era o oposto de negócio. Tenho, portanto, no período em que estou com a minha anfitriã, aprendido a olhar para o mundo de diferentes perspectivas e procurar respostas certeiras para o tempo em que vivemos, ao mesmo tempo que faço um esforço para compreender a realidade circundante e ver tal e qual ela é. Aproveito desta feita para falar com o máximo de gente possível.
                   Com a Miriam, nos últimos tempos, temos entregue o  tempo das manhãs de sábado a longos passeios junto do mar e onde falamos de trivialidades e demais banalidades, conversas onde debatemos  como o nosso corpo é essencialmente composto por 70% de água ou ainda o anúncio para breve da privatização da água por este Agregado Nacional de Sábios da Numerologia vulgo Comissão de Extinção de um País. Tal como ela, nasci bem perto do mar, junto de paisagens marítimas e foram, de facto, muitas as noites de festa da juventude em que nos perdemos junto da areia do mar. Evito evocar neste instante o nome de Eros mas seria uma irresponsabilidade não identificar o mar com uma mulher, o que me permite expandir o meu olhar e em que só muito mais tarde regresso a mim independentemente de quem me espera.  A nossa alegria tem sido muita ao podermos partilhar esta memória líquida e origem ancestral com toda a humanidade e por isso assusto-me só de pensar que Miriam possa estar enamorada por alguém que não eu. Nos próximos tempos Miriam terá que se ausentar durante algum tempo e julgo que esse tempo será para mim esclarecedor. Há dias, juntamente com o livro “A Condição Humana” da filósofa  Hanna Arendt, deixou-me um bilhete enigmático e misterioso que declarava o seguinte: “ Espero que continues a sentir acolhido e que nada te falte por aqui”. Nutri uma enorme alegria nas palavras de Miriam, enobrecido pela hospitalidade mas também pressenti algum afastamento que espero não corresponder à realidade.
                 Termino esta missiva augurando ao meu amigo Janeiro umas boas entradas no seu próprio mês e que seja um ano repleto de muita saúde e muito dinheiro (os sábios agora dizem que já não há…onde é que foi parar?) e por isso, meu bom amigo Janeiro faz mais falta que no início do mês do ano anterior.
Abraço-lhe com doze passas no bolso,
seu servo, Doutor Mara

Uma Missiva no Final de Dezembro de Janeiro Alves


Beira Litoral, 31 de Dezembro de 2013
Caro Doutor Mara,
  
                  Escrevo-lhe especialmente hoje pois não tenho por hábito escrever em Janeiro. Mas também para lhe desejar um ano realmente novo. O novo é a mudança que se opera dentro de nós e que faz avançar o mundo, e é por aqui que temos de começar. Um ano novo com ideias antigas é o mesmo que uma casa limpa com lixo debaixo do tapete, se é que me percebe.
                   Fiz uma incursão pelo campo ao longo destes dias de ausência. Encontro-me na província, essa bela palavra que provém do latim pro+vincere, ou seja, um pequeno território sob domínio de outro maior, para nós curiosamente, tudo o que excede os limites da grande capital. Mas esta província que percorro é mais profunda e inóspita. É um lugar de uma só estrada sem movimento aparente, uma república utópica independente, num vale esquecido que acolhe por natureza espontânea alguma forma de vida. Todos os dias acordo cedo, e ponho-me a andar pela pequena aldeia. Cheira a lenha queimada e a luz é algo de belo, mas a geada parece encontrar todos os subterfúgios do meu casaco para me poder castigar a pele. Esta punição matinal é um acordo firmado com a natureza, conheço bem as dicotomias da vida.
                  O ambiente bucólico não me arrasta minimamente para recordações de infância, dá-me ao invés, uma perspectiva de presente. Como o doutor Mara bem sabe, não sou de saudosismos, nem a minha memória me permite tais luxos. Mas apesar disso, este sítio traz-me à lembrança algo que preciso e não tenho. A luz atravessa os pinheiros, e nos seus feixes podemos observar pequenas partículas de vida, de oxigénio, de energia, coisas que há muito me faltavam. Os pássaros acordam e começam a voar. Não têm de fazer a cama, lavar os dentes, ouvir as notícias, vestir e calçar. Simplesmente abrem os olhos, assobiam para chamar os amigos e começam a voar. Tão mais fácil. Eu se fizesse isso, mesmo sabendo voar, acabaria no chão atordoado. Preciso sempre do meu café.    
É caso para se dizer, caro Doutor Mara, que bem se está no campo! E é no mais agreste dos lugares, onde a natureza foi deixada à solta e os habitantes são como paragens onde o autocarro já não passa, que desencadeei uma sequência de ideias que deram lugar a um pensamento que por sua vez se ramificou em várias reflexões paralelas e complementares, tendo originado uma convicção consolidada, ainda que aberta a correcções de índole formal, com vista a me desassossegar esta mente já por si perturbada. Acerca da nossa relação com a natureza. Destruímo-la para construirmos coisas, que também são natureza. Tudo é natureza, e o que fazemos é apenas transformá-la. Portanto, Doutor Mara, é importante que se diga que não estamos a destruir a natureza, como dizem os panfletos. Estamos a alterá-la, à nossa imagem, para nosso conforto, e pela nossa criatividade. Usamos a matéria prima para dar asas à fantasia humana, seja ela bela ou horrenda. Tudo sai da nossa cabeça, faz parte da nossa natureza. Se o escultor pudesse, esculpiria toda a pedra do mundo. Talvez deixasse intacta uma ravina, para no fim se atirar. Talvez o saudosismo de que falava, exprima bem isso. Ninguém tem saudades da natureza. A não ser que nela se tenha passado alguma coisa de humano.
                  Todas estas considerações, Doutor Mara, que se revestem de uma futilidade aparente, têm contribuído para uma mudança na minha pessoa. Estou a ser alvo de um golpe de estado no meu interior, e uma rebelião de ideias revolucionárias estão a tomar conta do meu sistema central. O ano que amanhã começa, será inigualável, pois foi neste ano que agora falece, que começámos ainda que timidamente, a despejar caixotes de lixo à porta dos que sofrem da impotência de criar. De amar. E de sonhar. É o ultimato futurista a ganhar forma, Doutor Mara.
                Agora me despeço, já a caminho do reveillon, mas não sem antes lhe dizer que aguardo ansiosamente por notícias suas, dos novos desenvolvimentos do enlace com Miriam Manaia, do famigerado plano de Vivaldo, e das suas considerações sempre doutas sobre o ano que hoje finda. Até Fevereiro!
Um natural abraço de
Janeiro Alves