terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Uma Missiva no Final de Dezembro de Janeiro Alves


Beira Litoral, 31 de Dezembro de 2013
Caro Doutor Mara,
  
                  Escrevo-lhe especialmente hoje pois não tenho por hábito escrever em Janeiro. Mas também para lhe desejar um ano realmente novo. O novo é a mudança que se opera dentro de nós e que faz avançar o mundo, e é por aqui que temos de começar. Um ano novo com ideias antigas é o mesmo que uma casa limpa com lixo debaixo do tapete, se é que me percebe.
                   Fiz uma incursão pelo campo ao longo destes dias de ausência. Encontro-me na província, essa bela palavra que provém do latim pro+vincere, ou seja, um pequeno território sob domínio de outro maior, para nós curiosamente, tudo o que excede os limites da grande capital. Mas esta província que percorro é mais profunda e inóspita. É um lugar de uma só estrada sem movimento aparente, uma república utópica independente, num vale esquecido que acolhe por natureza espontânea alguma forma de vida. Todos os dias acordo cedo, e ponho-me a andar pela pequena aldeia. Cheira a lenha queimada e a luz é algo de belo, mas a geada parece encontrar todos os subterfúgios do meu casaco para me poder castigar a pele. Esta punição matinal é um acordo firmado com a natureza, conheço bem as dicotomias da vida.
                  O ambiente bucólico não me arrasta minimamente para recordações de infância, dá-me ao invés, uma perspectiva de presente. Como o doutor Mara bem sabe, não sou de saudosismos, nem a minha memória me permite tais luxos. Mas apesar disso, este sítio traz-me à lembrança algo que preciso e não tenho. A luz atravessa os pinheiros, e nos seus feixes podemos observar pequenas partículas de vida, de oxigénio, de energia, coisas que há muito me faltavam. Os pássaros acordam e começam a voar. Não têm de fazer a cama, lavar os dentes, ouvir as notícias, vestir e calçar. Simplesmente abrem os olhos, assobiam para chamar os amigos e começam a voar. Tão mais fácil. Eu se fizesse isso, mesmo sabendo voar, acabaria no chão atordoado. Preciso sempre do meu café.    
É caso para se dizer, caro Doutor Mara, que bem se está no campo! E é no mais agreste dos lugares, onde a natureza foi deixada à solta e os habitantes são como paragens onde o autocarro já não passa, que desencadeei uma sequência de ideias que deram lugar a um pensamento que por sua vez se ramificou em várias reflexões paralelas e complementares, tendo originado uma convicção consolidada, ainda que aberta a correcções de índole formal, com vista a me desassossegar esta mente já por si perturbada. Acerca da nossa relação com a natureza. Destruímo-la para construirmos coisas, que também são natureza. Tudo é natureza, e o que fazemos é apenas transformá-la. Portanto, Doutor Mara, é importante que se diga que não estamos a destruir a natureza, como dizem os panfletos. Estamos a alterá-la, à nossa imagem, para nosso conforto, e pela nossa criatividade. Usamos a matéria prima para dar asas à fantasia humana, seja ela bela ou horrenda. Tudo sai da nossa cabeça, faz parte da nossa natureza. Se o escultor pudesse, esculpiria toda a pedra do mundo. Talvez deixasse intacta uma ravina, para no fim se atirar. Talvez o saudosismo de que falava, exprima bem isso. Ninguém tem saudades da natureza. A não ser que nela se tenha passado alguma coisa de humano.
                  Todas estas considerações, Doutor Mara, que se revestem de uma futilidade aparente, têm contribuído para uma mudança na minha pessoa. Estou a ser alvo de um golpe de estado no meu interior, e uma rebelião de ideias revolucionárias estão a tomar conta do meu sistema central. O ano que amanhã começa, será inigualável, pois foi neste ano que agora falece, que começámos ainda que timidamente, a despejar caixotes de lixo à porta dos que sofrem da impotência de criar. De amar. E de sonhar. É o ultimato futurista a ganhar forma, Doutor Mara.
                Agora me despeço, já a caminho do reveillon, mas não sem antes lhe dizer que aguardo ansiosamente por notícias suas, dos novos desenvolvimentos do enlace com Miriam Manaia, do famigerado plano de Vivaldo, e das suas considerações sempre doutas sobre o ano que hoje finda. Até Fevereiro!
Um natural abraço de
Janeiro Alves

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