segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Adormecido: Poesia na Terra Nova

         O Vulcão dos Capelinhos está há mais de meio século adormecido, acalmou após um ano de erupções strombolianas entre 27 de Setembro de 1957 e 24 de Outubro de 1958 do século vinte. Desde então e, não terá sido coisa de pouca monta, mais nada aconteceu naqueles dois quilómetros e meio de terra para lá dos garajaus que nidificam no dealbar do verão e se depõem no final da canícula, para lá da erosão. Aquela quietude vulcânica é apenas perturbada pela corveia diária de turistas que visita o seu Centro de Interpretação ou outros visitantes mais afoitos que se aventuram por entre a paisagem de cinza e silêncio em dias de bonança. Em termos artísticos, o fotógrafo Duarte Belo documentou este cenário de cinza em 2008 para o livro “Fogo Frio”, extraordinário objecto onde sobressai a venustidade do vulcão, ainda que hostil, mas profundamente bela. Outro acontecimento de fina estranheza e de poesia imagética deu-se com a criação da curta-metragem denominada de “Adormecido”, realizado há três anos pelo cineasta Paulo Abreu e produzido pelo 9500-Cineclube de Ponta Delgada, num azo sonoro e poético em torno desta força natural. “Adormecido” é, pois, m filme experimental marcado essencialmente por planos de síntese do Vulcão dos Capelinhos, arrumado essencialmente pelos sons captados do exterior e da paleta imaginária de sons provenientes do interior do vulcão, sendo exaltante a pletora sonora que aí acolhe.

Paulo Abreu quis muito, num plano oposto ao de Duarte Belo, registar em filme a descoberta dessa manifestação interior, enigmática e exteriormente silente, a meio do oceano atlântico. Constituído por planos de fuga em Super 8, aproveita para dar corpo e conta do vento, do céu e das nuvens que despontam em tão invulgar local, supondo assim o rumor interno daquele báratro em manifestação invisível, nessa possível congeminação de lava e outros materiais em combustão, o borbulhar dos gases e partículas quentes no interior do seu magma. É nessa dialéctica interior-exterior que este “Adormecido” é tão quente e poeticamente esclarecedor.
            Com a presença de diferentes câmaras espalhadas pela área do vulcão há no decorrer do filme a imagem de uma ossada de um cagarro em plano único e contido sobre a morte e a destruição a que este sítio é propenso, resultando tantos anos depois no seu esquecimento, permitindo aqui a prova de que o que importa é dar conta da actualidade e presente desse “deserto” possível e passível de pertença, após tantos anos passados da devastação inicial. Daí a interrogação: quantos filmes já pediu este vulcão? E, por isso, só um poeta da imagem é capaz de espalhar câmaras pela terra nova e captar a sua poesia visual e sonora para depois devolver-nos em jorro o que de mais profundo e alienígena assoma desta atmosfera carregada de detritos e escombros. É que podemos rebentar no ar esse conjunto de hipóteses de morte e de cinza que um lugar como Vulcão dos Capelinhos materializa mas, posteriormente, deveremos percepcionar e interrogar que aquilo que se encontra aparentemente adormecido e esquecido baste um curto, mas precioso filme, para despontar em nós a ideia de que  há sempre tanta coisa a bulir e a agitar-se por dentro.  Do vulcão e no interior de nós.

Um homem Sente-se Feliz nos Pleonasmos

Um homem sente-se feliz nos pleonasmos
comete excessos à exacta verdade dizer
sobe para cima da felicidade e exclama
era um fartote o querer contradizer-me
por vezes desce às catacumbas da dor
guarda um travo seco do amargo sabor a fel
espreita a noite escura sem saber

Confia devotamente nos pleonasmos
das escadas do pesadelo torna a subir
e do confronto com o ódio mais vil desiste
já que da morte nada sabemos
e é preferível pleonasticamente 
viver

Capítulo 1- Autonomia processual:


Chegamos ao momento em que se impõe falar sobre a mulher-alvo, parte implicada indirectamente no processo de criação, fonte das mágoas e das alegrias do Poeta. É essencial que ela se sinta importante, escolhida, por fim, de quem a merece. É bem sabido que as mulheres preferem uma mentira encantadora à verdade desagradável. Encontraram-nos, no entanto, numa posição ainda frágil e o mais sensato é não arriscar, acertar a cem por cento. Como? Nada de referências directas, um texto alegórico, um texto que fale apenas dum passado perturbante.

 
                         Nunca tiveste um altar
           
              E um dia pensei: tu nunca tiveste um altar.

            Já não há lugares assim onde hortaliças e batatas-doces

te façam sentir o preço certo da terra. (5)

Refugiaste-te na seiva bruta das tristezas

que se escoam oblíquo em gramáticas de jardins pendurados.

Já não há aquele tactear sincero do andar descalço no relvado

do primeiro email enviado por um pretexto qualquer.

      
            E um dia pensei: atrever-me-ei alguma vez a tocar-te os joelhos,

esses satélites lunares presos na conjunção

da diáfise com as epífises?

Poderei eu com estas mãos

subir sendas de seda debaixo da tua saia solitária? (6)

Serei capaz de aplicar um dia sanções na jurisdição do teu seio esquerdo,

eu que agora me atrevo a colocar uma multa no pára-brisas do teu sorriso? (7)

      Nada será igual. Nem traços de carvão em quadros de Bual.

                                                  Nem aguaceiros nas manhãs de Tajmahal.

 

Golgona Anghel

(5) sua mão direita acariciará levemente a sua cara.
(6) num gesto esboçado no ar imitará a efectividade das palavras ditas
(7) tocará suavemente com o indicador o lábio inferior da mulher.