terça-feira, 26 de março de 2024

nos livros de Luís Xarez

 às vezes as palavras saltam 
passam a fronteira 
da página 
e voam
de boca em boca 
em conversas em recados em citações
de mão em mão 
em bilhetes postais ilustrados 
em textos digitalizados e enviados 
mas não deixam de estar guardados 
nos livros à espera da sua hora 
a aguardar uma leitura libertadora 
as palavras agora
guardam-se nas nuvens 
e a poesia agradece 
porque o que se escreve nas nuvens 
parece espuma parece algodão doce 
mas nunca se esfuma 
nunca desaparece 

in assim, edição de autor, Dezembro de 2019.

Explicação do Poeta de Daniel Faria

Pousa devagar a enxada sobre o ombro
Já cravou muito silêncio

Como punhal brilha em suas costas
A lâmina contra o cansaço
in Poesia, Quasi Edições, 2003

Um Poema de Miguel Martins

Minha irmã tinha um herbário
(um belo herbário arbóreo)
mas o tempo que é otário,
o supremo salafrário,
embrulhou-o num sudário
perfumado a incensório,
que a fecha, sim, num armário,
para baixá-la ao crematório
onde crepita, ilusório,
esse conto do vigário
do trabalho meritório,
para acedermos a um empório
que só vende o acessório 
e, o que ainda é mais notório
torna o mundo menos vário
e muito mais merencório.

in Do Lado de Fora, Dispersos Escolhidos, 1995-2017, Abysmo, 2023.

Alter Ego de Cesare Pavese

Dal mattino alla sera vedevo il tatuaggio
sul suo petto setoso: una donna rossastra
fittta, come in un prato, nel pelo. Là sotto 
rugge a volte un tumulto, che la donna sussulta.
La gioenatta passava in bestemmie e silenzie.
Se la donna non fosse un tatuaggio, ma viva
aggrappata sul petto peloso, quest´uomo
muggirebbe più forte, nella piccola cella.

Occhi aperti, disteso nel letto taceva.
Un respiro profondo di mare saliva
dal suo corpo di grande ossa salde: era stesso
come sopra una tolda. Pesava sul letto
come chi s`è sveglato e potrebe balzare.
Il suo corpo, salato di schhiuma, girondava
un sudore solare. La piccola cella
non bastava all´ampiezza d´una sola sua occhiata .
A vederrgli le mani si pensava alla donna.

in 53 Poesie, Mondadori.

Um Poema de Paulo Campo dos Reis

Os meus pais vieram da merda.
Nasceram no tempo do senhor
que a produzia às mãos mãos cheias
como algodão doce

O meu irmão nasceu quando o meu pai 
já tinha umas férias para a África Austral 
Um dia fez as malas e lá foi ele, num avião
caçar lágrimas aos crocodilos

Mandou cartas que o meu irmão não entendia.
Também mandou dinheiro para ele, algum dia
as poder entender. Não valeu de nada.
Quando voltou, muito bronzeado, de cara hirsuta
nem a minha mãe, que tem a quarta classe antiga
soube dizer se ele vinha triste ou contente.
O meu irmão, a medo, chamou-lhe "pai". Ele, sem jeito
ofereceu-lhe uma garrafa de anis vermelho 
um crocodilo bebé embalsamado
e foi a correr livrar-se das barbas.

Quando eu nasci, o homem do algodão doce já tinha abalado
Houve uma revolução com muitos homens barbudos e zangados
mas que traziam uma flor na lapela de cor do anis
O meu pai comprou uma televisão a correr e um carro novo.
A minha mãe fez um aborto

O meu nome é Paulo Campos dos Reis
Campos da minha mãe 
Reis do meu pai.
Muito prazer. 
in Autógrafo seguido de Autocolantes, Quasi Edições, 2005

Gastão Cruz

    "Toda a escrita autobiográfica fosse uma solução, escrever memórias, dar conta daquilo que foi a sua experiência. Conheceu os grandes, de Antero a Eça. Mas quem se interessava por eles? O mundo caminhava para onde não sabia, e o que deixava para trás,  o país, sumia-se naquela longínqua pequenez que rapidamente se apagava ao percorrer a grande noite espanhola até ao amanhecer, já em França, para trocar de comboio, sem reparar que estava a ser visto por um Mário de Sá-Carneiro que iria contar ao seu amigo Pessoa que o grande poeta afinal era um unhas de fome, a contar tostões."

in Café Lenine, Edições Dom Quixote, 2022.

Rua do Quelhas 35.3º (Valsinha)

Morre-se devagar neste país 
onde é depressa a mágoa e a saudade
ó meu amor de longe quem me diz
como a tua sombra na cidade

Morre-se devagar em frente ao Tejo
repetindo o teu nome lentamente 
cintura com cintura beijo a beijo
e gritá-lo abraçado a toda a gente.

Morre-se devagar e de morrer 
fica a cinza de um corpo no olhar 
ó meu amor a noite se vier 
é seara de nós ao pé do mar.

António Lobo Antunes, Letrinhas de Cantigas, Edições Dom Quixote, 2002.