"Uma coisa fique clara: o espanto liga-se ao desejo, não às necessidades. Caímos frequentemente na tentação de pensar que necessidades e desejos talvez não sejam argumentos diferentes, já que refletem a mesma experiência: a da falta. Porém, entre ambos, como explicou Jacques Lacan, existe uma diferencça insuperável: é que "o desejo não tem objecto". A posse de um objecto satisfaz uma necessidade, mas o desejo é de outra ordem. O sujeito sabe o que deseja, mas não sabe o que deseja. O desejo é a forma de existência de um sujeito que é em si mesmo falta. Emerge em nós como percepção profunda de que somos lacuna (ou, na precisa definição de Lacan, de que somos um "aparato lacunar"). Por isso, mais do que oferecer-nos uma flecha, o desejo destapa em nós uma ferida. É uma força que atua por esvaziamento. O desejo desarma-nos primeiro para que possa acontecer o espanto."
José Tolentino Mendonça, in Revista do Expresso, 17 de Junho 2022.