quinta-feira, 4 de junho de 2015

Uma Missiva no Dealbar de Junho de Janeiro Alves

Doutor Mara,

       Estou estupefacto, que é como quem diz, estou estúpido de facto. Atenção, não confundir com estúpido de fato, expressão reservada aos que empobreceram a língua de Camões. Estou de facto estupefacto porque me chegaram aos ouvidos informações pouco abonatórias a seu respeito. Tão pouco abonatórias que eu diria até desabonatórias.
Sussurram-se pelas ruas de Lisboa as mais acutilantes farpas a seu respeito, deveras comprometedoras aliás. Diz-se que anda a viver acima das suas possibilidades, à grande e à francesa. Que trocou os filetes de peixe por luxuosas iguarias que incluem santola ao pequeno-almoço e vieiras ao jantar. Que foi visto a beber champagne do bom e do melhor na Sociedade Eusébio Deus da Pátria, tendo sido apanhado numa conversa sobre malas da Louis Vuitton com burgueses engravatados. Que mandou vir de Itália uns sapatos de pele de crocodilo que usa para grandes jantaradas e para passear no canal sentado no lounge de um Iate Ferreti, degustando Mon Cherrys feitos com fruta da época, e servidos em bandeja de prata por empregados do Bangladesh. Também me foi dito que ultimamente se pavoneia na avenida de fato branco e óculos 3D, acompanhado de algumas divas internacionais do espectáculo e das variedades, cumprimentando toda a gente com um aceno de mão, mesmo aqueles que não conhece. Enfim, que está transformado num grande burguês.
Confesso-lhe, Dr. Mara, que necessitei de alguns dias para reflectir sobre o assunto, intercalando com outras reflexões de índole mais científica, como por exemplo a problemática da actual falta de meios e de conhecimentos para uma observação eficaz das naturezas mortas.
Tenho-o como um homem de bem, apesar da forma errática como tem conduzido a sua vida, e apesar de todos os escândalos em que se envolveu por intermédio da sua promíscua relação com a família Manaia. Tenho-o também como um homem culto, das filosofias e das humanidades, apesar de saber que não perde os programas do Goucha, também conhecido como o Pomba Branca. Enfim, vejo-me incapacitado de o relacionar a tal descalabro, e portanto presumo que esteja a ser alvo de uma cabala, uma verdadeira maquinação de malvados ou maganos, com o intuito de denegrir a sua imagem e consequentemente desmantelar o seu edificado intelectual. Depois de todos os retrocessos que tem vindo a fazer após o seu pico de popularidade, imagino que estes rumores sejam para si verdadeiras chibatadas nas costas, e lhe causem um sério transtorno.
Dito isto, deixo aqui registado, assinado e subscrito, que estou solidário com a sua ilustre persona. Não o posso ajudar, pois como o Dr. Mara sabe, a observação e registo de fenómenos para normais ocupa todo o meu tempo. Mas posso aconselhar-lhe alguns capangas para o proteger no caso de ter de avançar para o exílio. Aconselho-lhe Bordéus, onde encontrará bons vinhos e óptimos filetes de peixe.
Junto a esta carta, seguem algumas conservas Bom Petisco e uma garrafa de Macieira, que lhe pouparão pelo menos uma ida ao supermercado, evitando que se confronte com a ira popular dos seus admiradores. Aguardo notícia de como pensa sair de toda esta situação constrangedora.

Com reforçada consideração,

Janeiro Alves