Espero que esta carta o encontre no
máximo das suas capacidades físicas e mentais, e na habitual desordem provocada
do seu pensamento futurista. Espero igualmente que o preço dos filetes de peixe
esteja mais acessível do que da última vez, pois sei que é um verdadeiro
apreciador.
Para além de notas soltas da
minha diária contemplação do maciço dos Alpes, e da permanente observação de
fenómenos extra-planetários, nada teria para lhe contar, não fora a
circunstância inesperada de me ter encontrado com Vivaldo Manaia, o mais
Italiano dos Manaias, e que surpreendentemente reside muito perto do meu
humilde habitáculo. O doutor Mara não imagina, nem lhe consigo descrever por
palavras, a satisfação que foi poder conhecer o mais profícuo dos Manaias de S.
Miguel, o mais internacional e consagrado elemento do clã, no seu habitat
artificial. Tudo aconteceu numa tarde em que fotografava fenómenos espontâneos
de situações que acontecem simultaneamente, numa rua movimentada de Milão,
quando me deparo com um homem;
Gordo, de olhos castanhos, carão
rechonchudo,
Mal servido de pés, também em
altura,
Estragado de facha, pior de
figura,
Nariz gordo no meio, olhar
sisudo
Ali estava Vivaldo Manaia, a antítese viva de Bocage, a apanhar o eléctrico nº 14 para o Duomo, com três cães, um grande, um pequeno e um outro que não era grande nem pequeno, e nem sei se seria um cão. Reconheci-o à distância a que se reconhecem os grandes homens, sem que eles nos reconheçam a nós. Apressei-me para apanhar o mesmo eléctrico, e engendrava uma forma de poder registar aquele momento e conseguir algumas palavras do grande mestre Manaia. Sentei-me à frente do cão maior, que me fitava enquanto mostrava lateralmente a sua potente cremalheira pronta a afiar em caso de necessidade. Mantive-me calmo. Já com os olhos postos no chão conspurcado da carruagem, desprovido de argumentação, oiço: “Você não é o Janeiro Alves?”. Imagine, doutor Mara!
Disse-me que me conhecia, mas que
não podia dizer de onde nem porquê. Saímos e fomos beber uma garrafa de vinho
Lombardo a um botequim da cidade, e discutir assuntos mundanos. Mas eis que no
meio de divagações de menor relevância, o nosso ilustre Manaia me comunica que
pretendia desvendar-me as linhas gerais do seu plano magistral, assunto de
extrema importância para Portugal, um projecto de uma amplitude paranormal que
iria definitivamente alterar o cenário nacional. Um plano para a crise, e
portanto, para dizimar, com ou sem aspas, o velcro governativo que nos dirige.
E nós sabemos do que os Manaias são capazes, doutor Mara, nós sabemos... Mas
porque há momentos em que sucedem coisas indetectáveis em tempo útil, eis que a
meio de um brinde, e em profunda ansiedade de querer saber mais, o cão que não
era pequeno nem grande se atira a mim e me provoca ferimentos de alguma
gravidade. Fui transportado para o hospital de urgência. O médico que me
acordou no dia seguinte, esclareceu-me tudo. Fui atacado por um papagalo, uma
espécie da floresta negra alemã, cruzamento entre um cão, um furão e uma cabra,
e conhecido naquela zona alemã por comer galos inteiros à dentada. E assim
terminou o meu triste encontro com Vivaldo Manaia.
Mas a razão desta carta guardo-a
para o fim. No bolso do meu casaco verde de veludo, ainda marcado de sangue e
dentes caninos, encontrei um bilhete. “Caro Janeiro Alves, peço-lhe desculpa
pelo sucedido. Saberá a breve trecho todos os detalhes do meu plano por
intermédio do Doutor Mara...”
Um fraterno abraço,
Janeiro Alves