segunda-feira, 1 de abril de 2013

Maraísmo-Doutorite



Doutor, doutor, de fato e gravata e sapatos bem engraxados, que honra nos dá assim vestido. Serão reminiscências pascais da sua meninice? Ainda por cima com um relógio no pulso e um Iphone da quinta geração. Que probidade, doutor Mara, pois ficámos a saber que há instantes foi convidado para ser presidente de mais um organismo ligado à cultura, desta feita à cultura da alga e do salitre. É o terceiro cargo da mais elevada importância que irá ocupar no espaço de seis meses. Porque requisitam assim tanto os seus saberes e méritos para os mais altos cargos directivos, caríssimo doutor Doutor Mara?
Doutor Mara: De elevada importância? Altos cargos directivos? Vamos com calma, rapaziada…Como tenho o ancestral hábito de ir provas de vinho por questões de curiosidade e aprendizagem, no final do quarto ou quinto copo dessas agradáveis provas dos melhores néctares dos deuses, há aqueles senhores, enfatuados e ensoberbecidos, que devem pensar: “e…se arranjássemos um cargo para este gajo, que, por sinal, também é doutor, fala com eloquência e profere umas coisas acertadas e que ninguém consegue refutar?”. Como podem imaginar, quem tem algum poder gosta muito de distribuir cargos irrelevantes pelos seus subordinados para poder controlar o que se vai fazendo e assim continuar sem nada para fazer a não ser mandar. Depois, há também a muito batida troca de favores, que é uma prática muito antiga na nossa cultura, às vezes ridicularizada nos tempos modernos, essencialmente quando se recorda a entrega de diferentes oferendas e víveres ao cacique local, ao médico de família ou ao pároco da aldeia em tempos remotos.Hoje um favor é pago com outro favor sem grande alarido e fica tudo em família, ao contrário de antigamente. Há favores muito bem pagos ao longo do tempo. É por isso que eles se agarram ao poder como à carne sangrenta…

DM: Carne sangrenta, doutor?
Doutor Mara: Relembro aqui o crítico de arte John Ruskin (1819-1900) que um dia escreveu: “Não manda bem quem tem a ânsia de mandar”. Corremos, no entanto, o risco de ser esse o retrato que ficará do nosso amado país no final do século XX e inícios do XXI. Sobretudo daqueles que mandaram e se ocuparam dos mais altos cargos dirigentes em governos ditos republicanos, ao serviço da causa pública.Ficarão célebres pela sua ânsia de mandar e muito pouco serviram o seu povo ou círculo de eleitores. Daqui a pouco iremos ter eleições autárquicas e após contarmos a quantidade de anos que alguns autarcas passaram pelas respectivas câmaras, seria bom verificarmos por instantes como ficarão financeiramente as suas edilidades e arquitectónicamente as suas cidades.Alguém fará isso? É verdade que há quem deixe obra de qualidade e que tenha realizado dignamente o seu trabalho mas também houve muita gente que não cumpriu seriamente o serviço público para o qual se comprometeu. Alguns serviram-se muito mais do que serviram,“ansiosos apenas por mandar, agarram-se ao poder como a carne sangrenta”. Já para não falar vezes do factor C (Cunha) que imperou um pouco por todo o lado. 

DM: Acredita então que o factor D (Doutor) foi uma mais valia para os convites que lhe têm sido feitos recentemente? É caso para dizer que no seu caso o Factor D foi substituído pelo factor C?
Doutor Mara: Que engraçados, vocês, meus caros!!! Se bem me lembro, julgo que desde pequeno que me chamam Doutor. Julgo que foi uma forma de me tirarem um peso e uma dificuldade aquando da minha chegada à idade adulta. Creio que foi também para me ir habituando ao "país dos doutores" e que não tivesse contínuas faltas de respeito pelos meus colegas de escola ou ausência de reconhecimento social nos locais para onde fosse viver. É curioso, pois quando regressei da faculdade com o respectivo canudo, até o meu vizinho, conhecido por ser antipático e trombudo, me saudava com um feliz e retumbante: “Um excelente bom dia para sim senhor doutor Doutor Mara”. Comovente, sem qualquer dúvida.

DM: Bom…está agora a aparecer nas últimas online que escolheram o Doutor Mara para ser o presidente do Júri do primeiro  Festival de Teatro Mínimo…peças teatrais com apenas quinze minutos de novos autores, um mega evento em perspectiva e a que ninguém, mesmo ninguém, ficará indiferente. Face à situação actual do teatro, o Doutor Mara irá aceitar?
Doutor Mara: Lá estão vocês a exagerar…Festival de Teatro Mínimo? Logo eu que já vi uma peça de teatro de onze horas numa sala de cinema…que saudades do documentário teatral. Por vezes, sobram para mim estes cargos de cariz quase esotérico e residual que raramente não consigo dizer que não, sobretudo vindo de jovens actores, Casas do Povo ou associações culturais sem dinheiro para mandar cantar um cego. Julgo que aceitarei, desde que o pagamento seja feito com uns almoços e uns jantares bem regados. E que me deixem, entretanto, algum tempo para praticar o meu bilhar de três buracos.

DM: Sabe-se que o Doutor Mara tem rotinas diárias de um verdadeiro doutor, não é assim? Quer dizer-nos como ocupa as suas tarefas quotidianas?
DM: Nada de especial, meus caros. Levanto-me todos os dias às seis e quarenta e cinco da manhã invariavelmente. Bebo um sumo de limão e como uma tosta sem sal. Faço duas corridas ao bilhar grande, suo um pouco e entro no mar rapidamente com o objectivo de provocar um choque térmico e dilatação arterial. Limpo-me com uma toalha vermelha, escrevo e trabalho até às onze da manhã. A partir do meio-dia dedico-me a ler e a fazer perguntas sobre o estado do mundo e sobre o estado das artes em geral. Por volta das seis da tarde, passeio-me junto do mar com o meu psicanalista. Pelo menos três vezes por semana, este verifica se tenho muitos actos falhados, se continuo a sonhar com actrizes escandinavas dos anos setenta e se mantenho os meus instintos agressivos ao nível dos euros que trago no bolso. No final do dia, respondo às inúmeras cartas e solicitações que me enviam de toda a parte. Às dez horas da noite, encontro-me já a dormir que nem um executivo do Banco Central Europeu. Felizmente ou infelizmente, o taxímetro metabólico corporal comprova a sua existência com a a necessidade de evacuação de líquidos logo no alvoroçar da aurora. Ao fim de semana, não me perguntem...já vos dei algumas dicas. 

DM: Doutor Mara, muito pouco ou quase nada sabemos sobre a sua infância a não ser que já nessa altura o apelidavam de doutor. Será que nos pode contar alguma coisa sobre si?
Doutor Mara: Nasci no final da década de sessenta, no seio de uma família portuguesa, conservadora, de classe média. Fui uma criança muito feliz, com o devido respeito pelos vizinhos que possa ter importunado a cabeça e que não devem ter sido poucos. Recordo-me vagamente da escola primária e dos desenhos que fazia nas aulas. Um terror. Os meus desenhos eram horríveis. Apanhei grandes reguadas da professora por não saber desenhar uma montanha como deve ser ou então por estar sempre a procurar companhia para as brincadeiras ou galhofas. Mas foi também aí que descobri o meu amor às ciências do mar e às letras…enquanto sedução das minhas companheiras de carteira. A minha colega Eunice ainda hoje guarda as duzentas e vinte cartas que lhe enviei durante a minha passagem pelo ensino básico. Espero vivamente que ela não se lembre de as publicar no facebock...seria catastrófico, sobretudo do ponto de vista literário.

DM: O Doutor Mara era uma criança mal comportada, ou então uma criança hiperactiva como hoje se diz?
Doutor Mara: Nem uma coisa nem outra. Era sobretudo uma criança filha dos meus pais, do lugar onde cresci, do tempo e da história que estava a viver, um verdadeiro filho da pátria, portanto. Deu no que deu…como podem constatar!

DM: Muito obrigado, doutor Doutor Mara. Até um dia destes sem inflamação doutoral.