Doutor, doutor, de fato e gravata e sapatos bem
engraxados, que honra nos dá assim vestido. Serão reminiscências pascais da sua
meninice? Ainda por cima com um relógio no pulso e um Iphone da quinta geração. Que probidade, doutor Mara, pois ficámos a saber que há instantes foi
convidado para ser presidente de mais um organismo ligado à cultura, desta
feita à cultura da alga e do salitre. É o terceiro cargo da mais elevada
importância que irá ocupar no espaço de seis meses. Porque requisitam assim
tanto os seus saberes e méritos para os mais altos cargos directivos, caríssimo
doutor Doutor Mara?
Doutor Mara: De elevada importância?
Altos cargos directivos? Vamos com calma, rapaziada…Como tenho o ancestral
hábito de ir provas de vinho por questões de curiosidade e aprendizagem, no final
do quarto ou quinto copo dessas agradáveis provas dos melhores néctares dos
deuses, há aqueles senhores, enfatuados e ensoberbecidos, que devem pensar: “e…se
arranjássemos um cargo para este gajo, que, por sinal, também é doutor, fala
com eloquência e profere umas coisas acertadas e que ninguém consegue refutar?”.
Como podem imaginar, quem tem algum poder gosta muito de distribuir cargos
irrelevantes pelos seus subordinados para poder controlar o que se vai
fazendo e assim continuar sem nada para fazer a não ser mandar.
Depois, há também a muito batida troca de favores, que é uma prática muito
antiga na nossa cultura, às vezes ridicularizada nos tempos modernos, essencialmente
quando se recorda a entrega de diferentes oferendas e víveres ao cacique local,
ao médico de família ou ao pároco da aldeia em tempos remotos.Hoje um favor é pago com
outro favor sem grande alarido e fica tudo em família, ao contrário de antigamente. Há favores muito bem pagos ao longo
do tempo. É por isso que eles se agarram ao poder como à carne sangrenta…
DM: Carne sangrenta, doutor?
Doutor Mara: Relembro aqui o crítico de
arte John Ruskin (1819-1900) que um dia escreveu: “Não manda bem quem tem a ânsia de mandar”. Corremos, no entanto, o
risco de ser esse o retrato que ficará do nosso amado país no final do século
XX e inícios do XXI. Sobretudo daqueles que mandaram e se ocuparam dos mais
altos cargos dirigentes em governos ditos republicanos, ao serviço da causa
pública.Ficarão célebres pela sua ânsia de mandar e muito pouco serviram o seu povo ou círculo de eleitores. Daqui a pouco iremos ter eleições autárquicas e após contarmos a
quantidade de anos que alguns autarcas passaram pelas respectivas câmaras, seria bom verificarmos por instantes como ficarão financeiramente as suas edilidades e arquitectónicamente as suas cidades.Alguém fará isso? É verdade que há quem deixe obra de
qualidade e que tenha realizado dignamente o seu trabalho mas também houve
muita gente que não cumpriu seriamente o serviço público para o qual se
comprometeu. Alguns serviram-se muito mais do que serviram,“ansiosos apenas por mandar, agarram-se ao
poder como a carne sangrenta”. Já para não falar vezes do factor C (Cunha) que imperou um pouco por
todo o lado.
DM: Acredita então que o factor D (Doutor) foi uma
mais valia para os convites que lhe têm sido feitos recentemente? É caso para
dizer que no seu caso o Factor D foi substituído pelo factor C?
Doutor Mara: Que engraçados, vocês, meus
caros!!! Se bem me lembro, julgo que desde pequeno que me chamam Doutor.
Julgo que foi uma forma de me tirarem um peso e uma dificuldade aquando da
minha chegada à idade adulta. Creio que foi também para me ir habituando ao "país dos doutores" e que não tivesse contínuas faltas de respeito pelos meus
colegas de escola ou ausência de reconhecimento social nos locais para onde
fosse viver. É curioso, pois quando regressei da faculdade com o respectivo
canudo, até o meu vizinho, conhecido por ser antipático e trombudo, me saudava
com um feliz e retumbante: “Um excelente bom dia para sim senhor doutor Doutor
Mara”. Comovente, sem qualquer dúvida.
DM: Bom…está agora a aparecer nas últimas online que escolheram o Doutor Mara para ser o presidente do Júri do primeiro Festival de Teatro Mínimo…peças teatrais com
apenas quinze minutos de novos autores, um mega evento em perspectiva e a que
ninguém, mesmo ninguém, ficará indiferente. Face à situação actual do teatro, o
Doutor Mara irá aceitar?
Doutor Mara: Lá estão vocês a exagerar…Festival
de Teatro Mínimo? Logo eu que já vi uma peça de teatro de onze horas numa sala
de cinema…que saudades do documentário teatral. Por vezes, sobram para mim
estes cargos de cariz quase esotérico e residual que raramente não consigo
dizer que não, sobretudo vindo de jovens actores, Casas do Povo ou associações
culturais sem dinheiro para mandar cantar um cego. Julgo que aceitarei, desde
que o pagamento seja feito com uns almoços e uns jantares bem regados. E que me
deixem, entretanto, algum tempo para praticar o meu bilhar de três buracos.
DM: Sabe-se que o Doutor Mara tem rotinas diárias de
um verdadeiro doutor, não é assim? Quer dizer-nos como ocupa as suas tarefas
quotidianas?
DM: Nada de especial, meus caros. Levanto-me todos os
dias às seis e quarenta e cinco da manhã invariavelmente. Bebo um sumo de limão
e como uma tosta sem sal. Faço duas corridas ao bilhar grande, suo um pouco e
entro no mar rapidamente com o objectivo de provocar um choque térmico e
dilatação arterial. Limpo-me com uma toalha vermelha, escrevo e trabalho até às
onze da manhã. A partir do meio-dia dedico-me a ler e a fazer perguntas sobre o
estado do mundo e sobre o estado das artes em geral. Por volta das seis da tarde,
passeio-me junto do mar com o meu psicanalista. Pelo menos três vezes por
semana, este verifica se tenho muitos actos falhados, se continuo a sonhar com
actrizes escandinavas dos anos setenta e se mantenho os meus instintos
agressivos ao nível dos euros que trago no bolso. No final do dia, respondo às inúmeras
cartas e solicitações que me enviam de toda a parte. Às dez horas da noite,
encontro-me já a dormir que nem um executivo do Banco Central Europeu.
Felizmente ou infelizmente, o taxímetro metabólico corporal comprova a sua
existência com a a necessidade de evacuação de líquidos logo no alvoroçar da
aurora. Ao fim de semana, não me perguntem...já vos dei algumas dicas.
DM: Doutor Mara, muito pouco ou quase nada sabemos
sobre a sua infância a não ser que já nessa altura o apelidavam de doutor. Será
que nos pode contar alguma coisa sobre si?
Doutor Mara: Nasci no final da década de
sessenta, no seio de uma família portuguesa, conservadora, de classe média. Fui
uma criança muito feliz, com o devido respeito pelos vizinhos que possa ter
importunado a cabeça e que não devem ter sido poucos. Recordo-me vagamente da
escola primária e dos desenhos que fazia nas aulas. Um terror. Os meus desenhos
eram horríveis. Apanhei grandes reguadas da professora por não saber desenhar
uma montanha como deve ser ou então por estar sempre a procurar companhia para
as brincadeiras ou galhofas. Mas foi também aí que descobri o meu amor às
ciências do mar e às letras…enquanto sedução das minhas companheiras de
carteira. A minha colega Eunice ainda hoje guarda as duzentas e vinte cartas
que lhe enviei durante a minha passagem pelo ensino básico. Espero
vivamente que ela não se lembre de as publicar no facebock...seria
catastrófico, sobretudo do ponto de vista literário.
DM: O Doutor Mara era uma criança mal comportada, ou
então uma criança hiperactiva como hoje se diz?
Doutor Mara: Nem uma coisa nem outra. Era
sobretudo uma criança filha dos meus pais, do lugar onde cresci, do tempo e da
história que estava a viver, um verdadeiro filho da pátria, portanto. Deu no
que deu…como podem constatar!
DM: Muito obrigado, doutor Doutor Mara. Até um dia
destes sem inflamação doutoral.