Não se avista ninguém nas ruas e, subitamente, há um homem que canta, mal e desafinado, é
certo, mas canta, há outro que grita frases soltas e desconexas e há ainda quem
distribua, sempre que pode, jornais aos amigos. Os jornais encontram-se agora sem
compradores, a versão impressa vende muito pouco. E desde que o confinamento começou,
aguentam-se os mais robustos financeiramente, os que já estavam instalados há
mais tempo ou aqueles que sempre tiveram um grande grupo económico por detrás. Os
jornalistas são pessoas que vivem de palavras, têm que comer, vivem com famílias
ou necessitam de pagar as suas contas e encher o frigorífico. Os quiosques abrem a horas certas para
que os leitores possam ler as notícias, tactear o virar das folhas, pressentir o cheiro a
tinta do jornal impresso.
O
“Ardina”, habituado à sua disciplina e hábitos matinais, valoriza os pequenos gestos e este
tipo de coisas, já que dá a sua volta higiénica para fazer as suas compras
diárias e manter os músculos activos, ao mesmo tempo que faz a radiografia
matinal da cidade, acompanhado pela sua objectiva. Uma coisa é certa, ele parece conhecer de ginjeira as
pessoas que gostam de ler, aqueles que, tal como ele, não passam um dia sem
folhear as páginas de um jornal actual, ou mesmo antigo. Talvez,
por isso, habituou-se recentemente
a bater-lhes à porta, ou então, a deixar os periódicos e as
revistas na caixa do correio. “Depois faremos contas!”, diz, despedindo-se com
um sorriso nos lábios, como quem sabe das virtudes e dos vícios humanos, ou somente do simples e permanente prazer de ler um jornal. Este ardina não é um ardina qualquer, ao contrário dos ardinas
tradicionais ele distribui os periódicos no seu carro, por iniciativa individual, por
amizade, por mera atenção ao outro. Sem que ninguém lhe peça ou lhe faça alguma exigência. Este “ardina” é um amigo, um bom amigo, mas contas são contas!