segunda-feira, 9 de junho de 2014

Dois Poemas de Eduardo Bettencourt Pinto

Homem consigo próprio

E por uma voz que ainda não escutou
que se levanta do Inverno.
Esperou anos por uma sombra,
um pedaço de terra sem pedras,
uma janela donde pudesse olhar
a inviolável paisagem,
as distantes casa crepusculares, o pó
que derruba no silêncio
a tangível e cintilante melancolia do olvido,
Tomou a sua vida nas mãos, a transparência solar,
fluidez ardente da paixão
Nunca cantou do alto dos palcos da pesporrência
ou entre cintilantes plêiades de comissionistas
da moralidade, 
mas nas derrubadas colunas dos templos,
junto às lágrimas e ao sangue
dos dias
em que morria por tanto amar
um ramo de nespereira quebrado
no olhar duma mulher.
Tem agora postura soturna, alquebrada pelo
reumatismo
uma garça de angústia voa-lhe no coração.
Senta-se no átrio da igreja coçando os joelhos,
cabelos ralos adejando. As verrugas, acentuadas,
são profundas fissuras de mármore.
Alheio, vulnerável, quieto como um álamo,
não se lhe adivinha  o andarilho.
Esteve em Nova Iorque, viu ópera,
foi assaltado por um drogado numa galeria
em São Francisco enquanto se concentrava num
[Dalí,
comeu piza olhando, perturbado,
decotes desinibidos numa praça de Paris,
passou em frente à Casa Branca numa demonstra
[ção  contra a guerra, bebeu
tequila em esconsos povoados mexicanos
[até se esquecer do próprio nome, amou
tão febrilmente que julgou
pisar de leve a superfície dum paraíso
abstracto. Viveu como um príncipe
deserdado,
e trabalhou num fábrica de sabões  tantos anos
Que até a primavera cheirava a sabonete
reformado, ombros caídos, mãos calosas
e deformadas pela solidão,
sentiu no peito o ressoar
da última morte.
Fez as malas, juntou fotografias da sua juventude
em estações de neve, entre amigos e abraçado
a uma irlandesa,
seus pais, vultos cinzentos
na idade da memória.
Mas só ao chegar à ilha,
estonteado e perdido,
compreendeu que a saudade
nunca leva um homem
ao princípio do tempo.

Residência

Guardas as estações do sol e as harpas.
Os perfumados símbolos da terra cantam
no primeiro verão do olhar.
As mão levam-te a vasos de margaridas brancas,
sinuosos e claros oceanos.
Sentas-te à mesa da tribo e repartes o pão.
«Um homem que ama nas sombras o fulgor e as
[essências,
nunca chega tarde aos degraus da alegria», dizes,
o cheiro do vento e do trigo entre os dedos.
Não podes morrer contra o sonho contando
as pedras e alvoroços,
a face reflectida nos espelhos da alma.
Nunca partas dessa casa onde cresce agora
a voz das crianças, os rios da sua inocência,
as mais bravas e fragrantes ervas do amor.
Queres, eu sei, esse mar, a breve cama dos pombos
quando se abrigam nos rumores.
«Não há maior orfandade que chegar à ternura
sem palavras», dizes, os cisnes de Junho
nadando em círculos nos teus olhos.

  in “nove rumores do mar – antologia da poesia açoriana contemporânea”.