Caro Dr. Mara,
Os meus dias mais recentes têm-se revestido de uma
certa e determinada preocupação. Preocupação com o estado das coisas, e
preocupação com o facto de não saber de si para as resolver. Nem de si nem do
seu paradeiro. A única pista relevante foi-me dada por um transeunte comum e
incaracterístico que me confidenciou ter visto o seu paradeiro de soslaio numa
chafarica urbana.
Essa sua ausência certamente catártica tem-me causado
algum transtorno, pois como sabe há muito que conto com a sua diligência e até
esperteza na aplicação de métodos de trabalho com vista à implementação do
nosso projecto futurista. Confiei nas suas mãos os mais engenhosos, invulgares
e até pouco ortodoxos planos de instalação de novas consciências para a
transformação colectiva. Trouxe até si toda a filosofia reformadora que o
subtraiu ao mundo das trevas onde estava afundado há anos e lhe permitiu
vislumbrar o brilho cintilante e cristalino da luz do conhecimento. Fui tantas
vezes assistência da sua oratória ensaísta, aplaudindo-o e aclamando-o de pé à
boa maneira Vienense, depois de horas e horas de retórica sobre ideias ainda
pouco consistentes. Apliquei-lhe os mais diversos correctivos de índole
estética, estilística, formal e etílica, em longas noites de trabalho
objectivando o seu crescimento intelectual. E agora desaparece do mapa, sem
dizer ai nem ui, e quando o país mais precisa de si.
Estou renitente quanto à sua saúde mental, sendo
certo que o isolamento forçado potencialmente contribui para a sua debilidade. Pretendo
portanto marcar uma reunião urgente consigo, em que a ordem dos trabalhos será
a seguinte: a) Fazer um balanço das conferências da Fajã; b) Escarnecer e
censurar sem piedade alguns acontecimentos contemporâneos; c) Agendar o nosso
habitual jantar de Natal com os nossos colaboradores internacionais; d) Jogar à
moeda para ver quem paga a conta.
É de toda a conveniência que esta reunião se mantenha
secreta, pois desconfio que neste momento ando a ser alvo de escutas por parte
de ouvintes profissionais ao serviço d’Eles. Proponho então que a mesma se
concretize na cave do Alfa Pendular, junto à Via do Mississípi X, quarta
cavalariça. A data e hora serão a combinar, de preferência antes da reunião
para que a mesma possa suceder.
Ainda que se mantenha no seu refúgio, e ainda que
esse refúgio possa ser imaginário, e ainda que a sua imaginação lhe forneça a
sensação ilusória de felicidade momentânea, estou certo que ao responder a esta
carta que lhe envio, encetará um movimento que poderá vir a dar o contributo
decisivo para a afirmação do seu palmarés.
Janeiro Alves
Lisboa, 4 de Novembro de 2015