quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Uma Epístola de Janeiro Alves no Cair da Cacimba....

Caro Dr. Mara,

       Os meus dias mais recentes têm-se revestido de uma certa e determinada preocupação. Preocupação com o estado das coisas, e preocupação com o facto de não saber de si para as resolver. Nem de si nem do seu paradeiro. A única pista relevante foi-me dada por um transeunte comum e incaracterístico que me confidenciou ter visto o seu paradeiro de soslaio numa chafarica urbana.
       Essa sua ausência certamente catártica tem-me causado algum transtorno, pois como sabe há muito que conto com a sua diligência e até esperteza na aplicação de métodos de trabalho com vista à implementação do nosso projecto futurista. Confiei nas suas mãos os mais engenhosos, invulgares e até pouco ortodoxos planos de instalação de novas consciências para a transformação colectiva. Trouxe até si toda a filosofia reformadora que o subtraiu ao mundo das trevas onde estava afundado há anos e lhe permitiu vislumbrar o brilho cintilante e cristalino da luz do conhecimento. Fui tantas vezes assistência da sua oratória ensaísta, aplaudindo-o e aclamando-o de pé à boa maneira Vienense, depois de horas e horas de retórica sobre ideias ainda pouco consistentes. Apliquei-lhe os mais diversos correctivos de índole estética, estilística, formal e etílica, em longas noites de trabalho objectivando o seu crescimento intelectual. E agora desaparece do mapa, sem dizer ai nem ui, e quando o país mais precisa de si.
       Estou renitente quanto à sua saúde mental, sendo certo que o isolamento forçado potencialmente contribui para a sua debilidade. Pretendo portanto marcar uma reunião urgente consigo, em que a ordem dos trabalhos será a seguinte: a) Fazer um balanço das conferências da Fajã; b) Escarnecer e censurar sem piedade alguns acontecimentos contemporâneos; c) Agendar o nosso habitual jantar de Natal com os nossos colaboradores internacionais; d) Jogar à moeda para ver quem paga a conta.
       É de toda a conveniência que esta reunião se mantenha secreta, pois desconfio que neste momento ando a ser alvo de escutas por parte de ouvintes profissionais ao serviço d’Eles. Proponho então que a mesma se concretize na cave do Alfa Pendular, junto à Via do Mississípi X, quarta cavalariça. A data e hora serão a combinar, de preferência antes da reunião para que a mesma possa suceder.
       Ainda que se mantenha no seu refúgio, e ainda que esse refúgio possa ser imaginário, e ainda que a sua imaginação lhe forneça a sensação ilusória de felicidade momentânea, estou certo que ao responder a esta carta que lhe envio, encetará um movimento que poderá vir a dar o contributo decisivo para a afirmação do seu palmarés.
Janeiro Alves
Lisboa, 4 de Novembro de 2015