quinta-feira, 30 de novembro de 2017

À Noite Vou Cantar à Namorada

À noite vou cantar à namorada
canções que a Lua canta na altura de namorar
ela acha ela acha muita piada
quando eu à noite as vou cantar

Canções que a Lua canta na altura de namorar
à noite eu vou cantar à namorada
ela assoma ela assoma com a continuação era notada
quando eu à noite as vou as vou cantar

E ela acha ela acha a isso muita piada
e eu lá as vou eu lá as vou cantar
que ela à noite ela assoma com a continuação era notada
e a continuação era notada não é para desperdiçar

Assim quando alta noite a Lua é já luar
e ela aparece toda amarrotada
eu imagino-a nua a se deitar
a das canções à noite namorada.

António Gancho, in 'O Ar da Manhã [Semblance]', edições Assírio&Alvim.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Da Atlântida

         
Revista Atlântida com capa de Luís Godinho
"Precisamos de estimular a criação de nova música açoriana., os seus criadores e a comunidade artística em geral. Criar referências contemporâneas, valorizar territórios, defender novos valores, estimular-lhes a experimentar, fazer, mostrar e dar-lhes plataformas de expansão dos seus projectos e carreiras. Eles não são o "artista local" dos cartazes das festas que estão antes das estrelas nacionais e internacionais. Eles são a possibilidade perto de ler o mundo, e de levá-lo além, eles são os Açores de agora. Eles carregam o mundo. Precisamos deles para fixar os artistas na região, despertar a curiosidade do público, envolver a população nos processos artísticos, reforçar a nossa identidade cultural e a identificação das nossas comunidades com a cultura e os seus processos de renovação. Precisamos da nossa comunidade artística para escrever de novo e de novo a nossa história. Eles são o tertemunho do nosso tempo aqui e agora."

António Pedro Lopes, in Revista Atlântida, 2017

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Sobre as lideranças

         "As lideranças ocidentais não têm mostrado criatividade alguma. Mas encontro enorme criatividade na China, por exemplo na ideia que tiveram de convidar todo o mundo a usar a nova rota da seda, a infra-estrutura de estradas e caminhos de ferro e portos que estão a construir. Com esse projecto eles conseguiram abrir África muito mais do que em todo o período do colonialismo. Claro que não estão a fazê-lo só por generosidade, estão à espera de recolher os seus lucros. Mas estão a mostrar como se podem  encontrar novas oportunidades. E os africanos estão gratos. A China tem a vantagem de tratar os africanos de uma maneira muito diferente e melhor do que fizeram os britânicos, os franceses, os belgas, os portugueses. O que se passou no (período colonial) não foi nada bonito." 
Johan Galtung, in Público, 24 de Novembro de 2017

sábado, 25 de novembro de 2017

Esplanada

Naquele tempo falavas muito de perfeição,
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,

agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro dentro de mim.

O café agora é um banco, tu professora do liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.
Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.

Manuel Pina, in 'Um Sítio onde Pousar a Cabeça'.

Do Contexto

       "É verdade que uma pessoa se habitue ao conforto de um hotel, de um voo, etc. Quando nos habituamos a que alguém tome conta de nós, tornamo-nos um pouco mais ignorantes. Mas pensei sobretudo no modo como representamos os pobres no cinema, que é muito sentimental e não é forçosamente verdade: os pobres são mais solidários uns com os outros, etc. Não quis retratar os pobres de modo sentimental, nem criticar as classes altas. Acho apenas que todos nos comportamos de acordo com a posição que temos na sociedade, ao longo de uma hirerarquia económica. Pensamos em nós próprios como indivíduos livres independentemente do contexto em que vivemos mas a verdade que estamos completamente dependentes desse contexto." 
Ruben Östlund, in Ípsilon, 24 de Novembro de 2017

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Novembro Teima em Despedir-se

Fotografia de Carlos Olyveira
Novembro teima em despedir-se, faço-lhe a vontade, inclino a cabeça para o futuro e avisto navios no horizonte. Não tarda nada entrará Dezembro, o último mês do ano. A água do mar está mais quente do que aquela que corre no chuveiro. A temperatura do ar continua irrepreensível, permitindo-se em jeito de reflexão pensar no frio que virá... ou será que não teremos frio? Bebemos agora muito muito mais chá já que assumimos que os dias são curtos, os agasalhos alinhados, e eis que a claridade esvai-se muito cedo. De súbito, estremecemos com a passagem dos dias que cortam o fôlego de tão lestos, ansiosos e demasiado rápidos sem darmos conta. Entramos assim na recta final do ano dezassete deste século XXI.
Celebramos, portanto, a melancolia típica da estação. Julgamos ser este o mês dos fotógrafos, dos pintores, dos músicos e das artes que exultam esta morrinha existencial tão própria do Outono. Por isso a cidade é lugar de exposições, espaço de renovação deste nosso olhar que queremos atento, na busca curiosa ou demanda das artes visuais na contemporaneidade. Que arte e artistas para este tempo? Em lugar de visionamento e contemplação ali está, no Núcleo de Arte Sacra, a exposição de fotografia “Prece Geral”, mergulho interior nas imagens veneráveis e privilegiadas de Daniel Blaufucks aquando andou em visita pelo Mosteiro da Cartuxa. Em exibição também e, até à Primavera do próximo ano, ficará “Interior/Exterior”, com curadoria de Nuno Marques da Silva e Luísa Cardoso, que nos revelam a riqueza e singularidade das obras presentes nas colecções do Museu Carlos Machado. Visitamos a mostra com essa delicadeza da ocupação do espaço e o cheiro a criptoméria, aproveitando assim para ver obras de artistas plásticos - Ana Vieira, Domingos Rebelo, Tomaz Borba Viera, Ernesto Canto da Maia, Duarte Faria Maia, Pedro Palma, entre tantos outros que aqui viveram, vivem ou por aqui deixaram obra. Do mesmo modo, que quem quiser ver os animais que vivem à noite enquanto dormimos, pode sempre dar um salto à Miolo, galeria multi-artes, na rua Pedro Homem, e assistir assim à proposta de Mariana Lopes, que regressa muito mais intimista, quase secreta, fortalecida neste seu trabalho solitário e luminoso, percorrendo veredas e mato, em busca dos segredos escondidos da Ilha do Faial. Ao observarmos esta exposição retiramos outra perspectiva/abordagem imagética do arquipélago e, talvez por isso, estas imagens necessitassem de uma maior amplitude e profundidade.
Ainda nestes últimos dias de Novembro, para lá das castanhas nos pratos e o vinho tinto nos copos, aqui esteve em delícia, sumptuosidade e arrojo -“Viagens na Nossa Terra",  recital de Joana Gama, interpretando obras de Amílcar Vasques-Dias e Fernando Lopes Graça, mais aquela tarde de sábado com sonhos e pesadelos de “Nocturno”, num espectáculo de Victor Hugo Pontes e Joana Gama, a partir das surpreendentes composições sonoras de João Godinho. E...agora que recordamos as promessas por cumprir no ano que vai rapidamente encerrar, conviria recordar que, muito embora o fim deste ano esteja próximo, sempre nos restam os versos de Ruy Belo: "Não temas porque tudo recomeça/ Nada se perde por mais que aconteça / uma vez que já tudo se perdeu”.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Enquanto o novo disco não chega...

Pedro Lucas e Carlos Medeiros
         

              "Ou como dirá Carlos Medeiros: "Fala-se da música tradicional como algo distante, lá do campo. Não vejo a "música do povo" como distante. Quem sou eu? Eu sou do povo. Quando falo da música tradicional falo da minha música e mudá-la não faz de mim menos genuíno ou autêntico."


in Visão, 16 de Novembro de 2017

domingo, 19 de novembro de 2017

Um Poema de Leonardo

detrás dos tambores de uma grande asma
um ardor arfa no vidro 
um eco 
com o seu vento de longe 
acorda-te apenas com os dedos
esboço 
de uma derrocada de flautas tristes

trata-se
de um anjo bêbedo que veio dizer-te 
que a fractura abriu pálpebras nas paredes 
que uma leve lua fende o chão 
do rumor de um exército de cascos 
que se aproxima

vem ajudar-te nos preparativos do festim 
para nos receber 
chegaremos cansados 
as preces encheram de pó as estradas 
os soldados suspiram por haxixe 
os cavalos não bebem ouro há três dias

prepara-nos banhos vinhos música 
acende todas as velas do oásis 
espalha os incensos  
enquanto esta carta atravessa a alegria 
do reencontro

ao chegarmos  
a mais alada das minhas filhas descerá
dir-te-á ao véu do ouvido ouve 
vê 
chove neste inferno 
por isso dança

e um dia 
ao regressares tu pelos passos da criança
sorrir-te-á pelo caminho 
a memória confusa de tudo isto que te escrevo agora 
em silêncio porque 
ambos sabemos 
felicidade e oxigénio e voz
tudo isto é inflamável

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Uma Missiva Extraordinária de Janeiro com Selo e sem Dinheiro

Magnífico Doutor,

               A presente carta reveste-se de um carácter extraordinário e premente, e resulta da minha indisfarçável preocupação com o modelo adoptado para as Conferências da Fajã deste ano. Por este andar, qualquer dia seremos uma espécie de web summit regional, um folclore mediatizado de pseudo-hypster-trendy-dandys engalanados, preocupados com os seus egos, e pouco interessados no pensamento de vanguarda e no bem comum. Qualquer dia, as Conferências da Fajã são patrocinadas pela vodafone ou pela margarina vaqueiro! Como pudemos aqui chegar, Doutor Mara?! Como podemos deitar por terra todo o manancial de reflexão crítica e construtiva para a construção do Séc. XXII futurista e expressionista?! Para que tenha noção do meu estado, tenho o sobrolho a palpitar, de nervoso. Há pouco, tomei um calmante e um copo de Macieira, para ver se não descambo. Perante isto, temos de tomar uma atitude, Doutor Mara! Eis portanto a razão desta carta.
Em primeiro lugar, e porque nem tudo é mau, queria dar-lhe (pessoalmente) os parabéns pela escolha do Champagne. É realmente uma selecção cuja dignidade e sofisticação se coaduna com a elevação do evento. Eu juntaria apenas o famoso Boerl & Kroff Brut, bastante apreciado quando bebido em cenário natural ou florestal, combinado com leves odores a maresia. Infelizmente, não posso dar-lhe os parabéns pessoalmente como desejaria, dada a impossibilidade física e psicológica de me deslocar, pelo que deixo aqui os meus parabéns por escrito. Apesar de não ser um acto tão efusivo como seria pessoalmente, onde seria selado com um aperto de bacalhau e algumas palmadas nas costas, tem a vantagem de ficar registado para a posteridade ou pelo menos até que estas folhas voem dos seus bolsos para a beleza do desconhecido.
Sem causar prejuízo na congratulação antecedente, avanço com a minha severa crítica à escolha dos chefes Gomes de Sá e Bulhão Pato para conferencistas, pois como é do conhecimento geral, estão presos ao passado, são conservadores, botas-de-elástico, e contribuem sempre com a mesma receita para pensar o país, aquela que já apresentaram no passado, e que já enjoa de tanto enjoar. Relativamente aos restantes conferencistas, por muita categoria que tenham, vejo muita gente ligada à temática do turismo. E a consciência Futurista, Doutor Mara? O turismo é apenas um fenómeno passageiro do nosso tempo. É preciso ver mais além! É preciso gente das ciências ocultas, da sociologia, da meteorologia, das artes e letras, da indústria têxtil!
Por outro lado, reconheço no Doutor Mara qualidades para a organização de um evento deste gabarito, mas não vislumbro em si dotes de “curassário”, esse vocábulo espalhafatoso e sobredimensionado. Julgo que a Comissão Geral se precipitou ao depositar em si toda esta responsabilidade. O Doutor Mara precisa de ser assessorado por quem saiba da matéria. Infelizmente não vou poder ajudá-lo nesta fase, pois estou a tratar da minha dentição de forma a vir a revelar um sorriso irrepreensível nas sessões fotográficas das Conferências. Ainda assim, é meu dever dar uma mão a um amigo de longa data, sobretudo quando mais precisa. É por isso que a seu tempo enviarei algumas sugestões ao Dr. Costa Martins, da comissão organizadora. Quero no entanto, e previamente, recolher a sua opinião sobre a ideia que tive esta manhã, a aplicar já na próxima edição: Proponho que os conferencistas vistam roupas tradicionais dos seus países, para que os restantes colegas possam fazer um reconhecimento imediato da sua proveniência, podendo assim preparar antecipadamente uma abordagem para conversa casual nos coffee breaks, evitando-se desta formas constrangimentos linguísticos desnecessários. Estou certo que também considerará esta ideia genial. Fazemos o que podemos, com altruísmo, e por amor à causa.
Por fim, despeço-me do meu caro amigo com uma triste notícia. Por imposição das elevadíssimas e doutas autoridades sanitárias desta cidade, deu-se ordem para a extinção imediata do fabrico de filetes de peixe, com ou sem espinhas, pelo facto de este produto gastronómico não obedecer à normativa nº 121 do código de qualidade e segurança 3001 da União Europeia, com efeitos retroactivos e devolução imediata dos produtos adquiridos nas últimas 3 semanas. Assim, e por ordem daquela autoridade, solicito-lhe que me devolva os filetes de peixe da última remessa.
Com apreço e consideração
Janeiro Alves

Um Poema de Daniel Gonçalves

Dá-me o mar, o meu rio, minha calçada, dá-me
todas essas coisas, que embrulhei nas cartas, e
aqueci nos beijos, dá-me tudo de volta, mesmo
riscado e subtraído, sem pilhas nem escamas,
apenas o pó do silêncio, e o bolso fundo do
futuro, faz-me falta o musgo da sombra, que
levaste no presépio da alegria, dá-me o tempo
das searas, e o pão que devíamos ter amassado,
na poesia da nossa cama, dá-me a coleira dos
nossos gatos, para eu prender a tristeza, e voltar a
rezar, se não levaste também, o deus que sempre
nos perdoou, as horas no sofá, a esquecer que
tudo isto, como tudo o resto, passa e acaba.

Inédito com a Márcia 

Joana Gama apresenta "Viagens na Minha Terra" no Teatro Micaelense


               No ano passado, Joana Gama trouxe-nos Satie.150, mais a narrativa biográfica do músico francês e o seu quotidiano místico e fantasioso em que a vida deste se confundia com a sua própria obra. É que agora que cai tanta chuva por estas bandas que nos servia tanto aquele legado de guarda-chuvas que Satie deixou no seu apartamento da periferia de Paris.
Desta vez, Joana Gama apresenta-nos “Viagens na Minha Terra”, um reportório composto por obras de Fernando Lopes Graça e Amílcar Vasques-Dias. O recital é na próxima sexta-feira, dia 17 de Novembro, às 21h30, no Teatro Micaelense. O preço dos bilhetes ronda os 7,5 euros.

168 anos depois...

"Preservado em conhaque, o coração de Chopin revela causa da sua morte."
in Atlântico Expresso, 13 de Novembro de 2017

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Novembro entrou e o Telegrama para Janeiro quase voou

Caro Janeiro Alves,

                  Estamos de novo nas primeiras páginas dos jornais e nas bocas do mundo e não se fala de mais nada a não ser nos preparos e organização das Conferências da Fajã. Apesar das divergências que temos tido nas nossas mais recentes trocas epistolares, espero, muito sinceramente, poder contar consigo e com a sua inteligência para mais uma intervenção de alcance futurista.
    Sobre a sua última missiva, apraz-me registar que o meu caro amigo abordou de forma subtil a minha vida folgada, afirmando mesmo que esta é sustentada com um bom pé-de-meia que recebi de espólio familiar. Quais são as suas fontes? Já agora, o que é que tem a ver com isso? Quer arranjar o seu fato preto? E quer comprar um ventilador de ideias em segunda mão? E se mexesse esse seu rico corpinho? Espalhe a sua sapiência e teorias futuristas por novos contextos sociais e mercados… é que já não me chegava a sua mania recente de me enviar filetes de peixe sem espinhas!? No sentido de sossegá-lo, afianço-lhe também que me encontro seguro e que não fui transportado por nenhuma onda. 
              Certo, certo é que este é um dos momentos mais aguardados do ano. Caso possa, agarre-se à cadeira de Luis XIII em que está sentado, dê lustro ao carvalho francês maciço do Séc. XIX, pois tenho a comunicar-lhe que fui nomeado o principal e eterno Curassário (uma mistura de Curador com Comissário) das Conferências da Fajã. Surpresa??? De súbito, comecei a receber todo o tipo de propostas para prelecções irreais, discursos anómalos, intervenções atípicas e manifestos utópicos. Sei também que tem trabalhado noite e dia, medido e pesado o teor e conteúdo da sua intervenção, muito embora a atenção dada ao seu cágado de estimação. Conto, por isso, nos próximos dias enviar-lhe o magnífico programa em papel couché "brilho" pelos correios com textos e fotografias de todos os palestrantes, conferencistas, manifestos e pausas para champanhe que temos agendadas.
 Despeço-me com um abraço líquido a condizer com a estação, bem como os augúrios de bom trabalho, 
                                 seu amigo eterno,
                                                                                                                                Doutor Mara

domingo, 12 de novembro de 2017

De Raul Brandão

       "O que eu procuro, pela primeira vez na minha vida, não é o panorama - é a exaltação da vida livre."

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Señoritas: Canções Dolentes ou Fábulas Urbanas?

“Disse-lhe que Portugal ainda tinha muitos comunistas
mas o que ele queria saber era onde havia señoritas
que o levassem a dar uma volta.”

in A Naifa, disco “3 minutos antes da maré encher”, poema de Tiago Gomes.


          A Galeria Arco 8 há muito tinha anunciado para o início de Novembro o concerto das Señoritas. Cumpriu-se a vontade e o motivo foi a apresentação do álbum "Acho que é meu dever não gostar", o mais recente projecto de Mitó Mendes e Sandra Baptista, cujo disco já tinha sido estreado em Setembro do ano passado. Conviria recordar que o projecto “A Naifa”, banda anterior do duo em questão e com impressão de Luís Varatojo, foi presença assídua em vários palcos do arquipélago, tendo existido mesmo um concerto mítico, à semelhança daquele dado no Teatro Faialense, em Maio de 2012, à altura carregado de  grande simbolismo, pois tratar-se-ia do primeiro concerto sem a presença do malogrado João Aguardela.
Na noite de sábado, o público no Arco 8 foi maioritariamente feminino. As Señoritas despontaram em palco com a força e a segurança de quem gosta muito daquilo que faz pois, segundo elas, continuam a ser livres de gostar ou não. Mitó Mendes canta e toca guitarra, Sandra Batista toca acordeão e baixo eléctrico e ambas socorrem-se dum 'leque' de programações que permite intensificar e preencher as 12 canções do seu álbum debutante.
 As letras de Sandra Baptista são directas, com versos simples e crus, a roçar emoções ferozes e com refrões disparados em revolta constante. Depois da abertura com a canção que dá título ao álbum, o foco recai em “7 Pragas” e remete a audiência para um ambiente peculiar. Há, sem qualquer dúvida, uma sensação de estranheza perante o arrojo minimal e que é traduzido neste casamento entre um olhar português do século XXI com aquilo que se pode chamar de pensamento urbano-feminista. A descontracção das duas em palco é bem visível nas canções como “Mão Armada”, um tema sobre a tensão pós-menstrual, ou “Nova”, que reflecte sobre quem recusa o envelhecimento, chegando mesmo a ouvir-se um coro de gente a cantar em uníssono: “viver bem/ sempre nova/ com os pés prá cova”. Pelo meio escutam-se outras variações ou fábulas urbanas e eis que intuímos a religião impregnada de culpa e de pecado em “Confesso” e “Confissão” - onde escutamos vozes gravadas em oração. Há também um lado sombrio em marcha fúnebre quando se repete até à exaustão - "Os funerais são os casamentos dos mortos", com uma letra a remeter para uma existência dolorosa. Menos sombrias e com cadências ligeiras e soltas ouvimos a abordagem ao torpor dos órgãos em “Ciática” ou o regresso à  infância com "Alice". A ousada proposta musical parecia ter chegado ao fim mas a dupla, entusiasmada, sentia-se em casa. 
    Por último, as senõritas regressaram ao palco para tocar os dois últimos temas, despedindo-se com uma versão por elas tão bem conhecida – “Amanhã”- dos Sitiados, canção que nos elucida sobre uma vida sem conflito a que não podemos deixar de fazer frente: “Alguém morre nos braços do mar/ alguém morre sem acreditar”. A verdade é que ainda havia muito para dançar e desfrutar com o anunciado DJ Fellini, certamente não o extraordinário realizador italiano, ainda que por instantes pensássemos ter estado na cidade das mulheres. 

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

...

Naquele porto os metalómanos barcos
esmagam a paisagem
de energia brutal, parada.

Num barco soviético

o marinheiro põe o punho a meio gás
como o comunismo enjeitado na sua terra.

Disse-lhe que Portugal ainda tinha muitos comunistas

mas o que ele queria saber era onde havia señoritas
que o levassem a dar uma volta.

Tiago Gomes

domingo, 5 de novembro de 2017

Os Domingos de Lisboa

Os domingos de Lisboa são domingos
Terríveis de passar — e eu que o diga!
De manhã vais à missa a S. Domingos
E à tarde apanhamos alguns pingos
De chuva ou coçamos a barriga.

As palavras cruzadas, o cinema ou a apa,
E o dia fecha-se com um último arroto.
Mais uma hora ou duas e a noite está
Passada, e agarrada a mim como uma lapa,
Tu levas-me p′ra a cama, onde chego já morto.

E então começam as tuas exigências, as piores!
Quer′s por força que eu siga os teus caprichos!
Que diabo! Nem de nós mesmos seremos já senhores?
Estaremos como o ouro nas casas de penhores
Ou no Jardim Zoológico, irracionais, os bichos?

Mas serás tu a minha «querida esposa»,
Aquela que se me ofereceu menina?
Oh! Guarda os teus beijos de aranha venenosa!
Fecha-me esse olho branco que me goza
E deixa-me sonhar como um prédio em ruína!... 

Alexandre O´Neill, in Poesias Completas, 1981.

sábado, 4 de novembro de 2017

Dos Versos...

Fotografia de Escultura de João Cutileiro
(Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada)
Não me recordo da primeira vez que li poesia. Desde que me conheço que aprecio ler livros de poemas, há ali qualquer coisa de preciso na reunião das letras, no agrupar das metáforas, nesse colher de sentido acorrilhado num texto poético. Ainda hoje não soube explicar porque me contento tanto ao ler poetas ou quem me terá persuadido neste ímpeto e safra diária que faço das letras que carecem de explicação. A generalidade das pessoas de quem gosto e de quem sou amigo preza muito ler ou faz hábito da leitura de poemas no quotidiano. Desconfio também que somos melhores a ler os textos do que a compreender as pessoas e o universo que nos rodeia. O que faz com que a maioria das vezes sejamos surpreendidos com as suas reações ou a incoerência e impiedade dos seus comportamentos ou mesmo que reconheçamos quando alguém age deliberadamente com o intuito de agredir alguém e pretenda abertamente pôr a pata em cima. Desconfiamos, claro, do mal e tentamos realizar uma leitura esforçada dos gestos de quem o pratica, ainda assim convém que não façamos de conta que nada se passou. Os filósofos a sério, aqueles que gostamos de seguir, são aqueles que sabem interpretar a humanidade que nos rodeia e conseguem predizer o futuro. Os poetas, felizmente, não têm essa pretensão. Há qualquer coisa de vate que faz com que consigam ler por instantes os pensamentos dos outros sem dar uma explicação racional do mundo e da humanidade. Desta feita, os poetas “explicam” através dos versos, da vida feita metáfora, intuição, a nossa existência. E, por isso, é que passamos os dias a lê-los.

Che Bellezza, Luigi Tenco!

       
         A noite avançava muito alta no "Colégio 27" e o serão resumia-se a esperar pela música de Marino Formenti que tocaria na véspera daquele feriado com os músicos locais que se decidissem a aparecer. Escancarados e apertados naquele minúsculo espaço de audição e fruição, saciados em petiscos de peixe do fundo e vinho branco fresco, aquela reunião de músicos prometia transformar-se em experiência de partilha, agitada que se tornou em ousadia e criatividade. 
       Marino Formenti saltaria entretanto para o piano para proferir em verso: "Mi sono innamorato di te/perche/ non avevo niente da fare" e fizesse com que alguém retivesse o nome de tal versejador - Luigi Tenco. Ao procurar a origem deste tema vejo que este foi gravado pela editora "Ricordi" em Novembro de 1962 e, por isso, não se parou de vasculhar sobre este cantautor de tão intensa e verdadeira declaração de amor. É que, logo de seguida, na conclusão da madrugada, os versos deste ainda ecoavam como borboletas esvoaçantes numa arrepiante e desconcertante certeza desse sentimento cristalino: “Mi sono innamorato di te/ e adesso non so neppure io cosa fare”. 

"Interior/Exterior" no Museu Carlos Machado


quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Poesia na Tascá

Fotografia de Bruno Gaudêncio
















Café
Lugar na esquina
A entrada é virada para norte
A porta tem 2m de altura e 1m de largura
completamente aberta
Apenas 5 mesas
A mesa onde me sento dista 3,45m da porta
A altura da mesa é de 75cm
A largura é 80cm
O comprimento é 80cm
A cadeira está voltada para a porta através da qual
posso, numa distância de 3,45m
ver a rua
A rua pela qual passam transeuntes
Transeuntes que não podes julgar
O julgamento que não podes concluir
A conclusão que é incompleta
Incompleta porque a porta só tem 1m de largura
Na mesa está:
Um copo
Diâmetro 60mm
Altura 150mm
Uma chávena
Diâmetro 45mm
Altura 70mm
Com um prato com um diâmetro de 120mm
No copo está água
Na chávena está um café pingado
Pingado que está a acordar curiosidade
A curiosidade que é inviável
Inviável porque não há tempo
Tempo que eu observo sentado
Sentado em frente da porta que
Só tem 1m
Neste espaço estou sentado eu
A minha altura é 1,89m
85kg de peso, mais ou menos 1kg
45 de calçado
Cabelo curto e barba
Cara um pouco longa
Cara que está estática
Estática porque nada distrai a sua atenção
Atenção que está em todo o espaço
Espaço estou sentado completamente sozinho
Em frente à porta de apenas 1m

Petar Šćulac, artista plástico.