terça-feira, 15 de julho de 2014

Gostaria de ler o teu livro na minha língua

              Avistava-se a cidade da Angra com o cair da noite do debutante estio. Depois de quarenta e dois dias a vacilar com o corpo e o balouço do barco no mar, branco de tanto vomitar num veleiro de onze metros, quase no último trecho da viagem marítima e pedindo socorro às veias que sossegassem, clamando pelo findar da turbulência e acicatar das ondas que o impediam de olhar o mar na horizontal, Carl Andresen conseguia, finalmente, respirar. O próprio veleiro dava sinais de cansaço, constando um pequeno mastro partido e todas as velas por amarrar. Ainda que encantado por pequenos laivos do azul ferrete açoriano avistados amiúde, este velejador dinamarquês só pensava em regressar a casa pelo ar e não mais por mar. Para ele, mal colocasse os pés em terra, daria por terminada a expedição iniciada nas Caraíbas. Há vinte anos que ninguém desatava o nó daquele barco. E, após seis meses que ali esteve, a desfrutar das delícias da marina de Anse Marcel, no norte de Saint Martin, das cubas livres e do gin, conseguiu finalmente reparar o veleiro e lançar-se ao mar. Entretanto, chovia muito, muito, ininterruptamente, quando Carl atracou o veleiro na marina de Angra, na Ilha Terceira, pousando os pés em terra e lançando-se ao caminho para o jantar. Entrementes, quando subiu a rua viu um pequeno casebre com muita gente alcandorada na porta, entrando sem hesitar. Era uma taberna repleta de gente parecida com ele, sem pátria aparente. Identificou-se imediatamente com os presentes pelo olhar gasto e cansado de alguns homens, alguns um pouco mais velhos  mas que, tal como ele, despediam-se de mais um dia.
O que trouxe Carl Andresen aos Açores? Há trinta anos o seu avó Nils Andersen andou neste mesmo veleiro pela aquela ilha do grupo central antes de regressar à Europa e o que seria uma estadia de três dias transformar-se-ia em três meses, daí que que se conte que este se tenha perdido de amores pela ilha, muito embora se desconfie que outras “razões superiores” possam ter estado no prolongamento da estadia. Apesar do enjoo e da dureza da travessia, Carl fez-se acompanhar durante toda a viagem ao arquipélago de um manuscrito escrito em português, fazendo agora questão de o transportar para todo o lado onde ia. Para tornar mais simples o seu transporte, colocou aquelas páginas no interior desse livro navegante escrito pelo avó. Era um livro já muito gasto, amarelecido, com as pontas das folhas dobradas e retorcidas do seu uso e abuso. Durante aquelas três semanas, Carl julga ter lido estas duzentas páginas diversas vezes, tomou apontamentos, coligiu notas e tentou por momentos descobrir o significado daquele título enigmático: “Velejar em Solitário até aos Açores”. Ao contrário do livro e, com o devido respeito, nunca quis saber o que seu avó terá escrito naquele manuscrito na presença da sua família. De qualquer modo, ao contrário do livro, as páginas guardadas no seu interior não estavam escritas na sua língua, continha vários desenhos e perfis femininos que se julgava serem todos da mesma pessoa. Carl soube que aquando do seu regresso a Norjedland, após essa viagem ao arquipélago açoriano, trazia um sorriso do outro mundo e que de imediato guardaria aquela alegria de forma intensa, refugiando-se de forma incompreensível. O neto soube que durante algum tempo o avó respigava o nome Açores em qualquer enciclopédia e logo se punha a traçar rotas, a inventar mapas e destinos a visitar para futuras viagens. “Gostaria de ler o teu livro na minha língua” era o título da primeira página dos manuscritos pousados agora sobre a mesa. Carl, após jantar naquela taberna, prometeu a si próprio deslindar aquele mistério. (continua)