Avistava-se a cidade da Angra com o
cair da noite do debutante estio. Depois de quarenta e dois dias a vacilar com
o corpo e o balouço do barco no mar, branco de tanto vomitar num veleiro de
onze metros, quase no último trecho da viagem marítima e pedindo socorro às
veias que sossegassem, clamando pelo findar da turbulência e acicatar das ondas
que o impediam de olhar o mar na horizontal, Carl Andresen conseguia,
finalmente, respirar. O próprio veleiro dava sinais de cansaço, constando um
pequeno mastro partido e todas as velas por amarrar. Ainda que encantado por
pequenos laivos do azul ferrete açoriano avistados amiúde, este velejador
dinamarquês só pensava em regressar a casa pelo ar e não mais por mar. Para
ele, mal colocasse os pés em terra, daria por terminada a expedição iniciada
nas Caraíbas. Há vinte anos que ninguém desatava o nó daquele barco. E, após
seis meses que ali esteve, a desfrutar das delícias da marina de Anse Marcel, no norte de Saint Martin, das cubas livres e do gin,
conseguiu finalmente reparar o veleiro e lançar-se ao mar. Entretanto, chovia
muito, muito, ininterruptamente, quando Carl atracou o veleiro na marina de
Angra, na Ilha Terceira, pousando os pés em terra e lançando-se ao caminho para
o jantar. Entrementes, quando subiu a rua viu um pequeno casebre com muita
gente alcandorada na porta, entrando sem hesitar. Era uma taberna repleta de
gente parecida com ele, sem pátria aparente. Identificou-se imediatamente com
os presentes pelo olhar gasto e cansado de alguns homens, alguns um pouco mais
velhos mas que, tal como ele, despediam-se
de mais um dia.
O que trouxe
Carl Andresen aos Açores? Há trinta anos o seu avó Nils Andersen andou neste
mesmo veleiro pela aquela ilha do grupo central antes de regressar à Europa e o
que seria uma estadia de três dias transformar-se-ia em três meses, daí que que
se conte que este se tenha perdido de amores pela ilha, muito embora se
desconfie que outras “razões superiores” possam ter estado no prolongamento da
estadia. Apesar do enjoo e da dureza da travessia, Carl fez-se acompanhar
durante toda a viagem ao arquipélago de um manuscrito escrito em português,
fazendo agora questão de o transportar para todo o lado onde ia. Para tornar
mais simples o seu transporte, colocou aquelas páginas no interior desse livro
navegante escrito pelo avó. Era um livro já muito gasto, amarelecido, com as
pontas das folhas dobradas e retorcidas do seu uso e abuso. Durante aquelas
três semanas, Carl julga ter lido estas duzentas páginas diversas vezes, tomou
apontamentos, coligiu notas e tentou por momentos descobrir o significado
daquele título enigmático: “Velejar em
Solitário até aos Açores”. Ao contrário do livro e, com o devido respeito,
nunca quis saber o que seu avó terá escrito naquele manuscrito na presença da
sua família. De qualquer modo, ao contrário do livro, as páginas guardadas no
seu interior não estavam escritas na sua língua, continha vários desenhos e perfis
femininos que se julgava serem todos da mesma pessoa. Carl soube que aquando do
seu regresso a Norjedland, após essa viagem ao arquipélago açoriano, trazia um
sorriso do outro mundo e que de imediato guardaria aquela alegria de forma
intensa, refugiando-se de forma incompreensível. O neto soube que durante algum
tempo o avó respigava o nome Açores em qualquer enciclopédia e logo se punha a
traçar rotas, a inventar mapas e destinos a visitar para futuras viagens. “Gostaria de ler o teu livro na minha
língua” era o título da primeira página dos manuscritos pousados agora
sobre a mesa. Carl, após jantar naquela taberna, prometeu a si próprio
deslindar aquele mistério. (continua)