sábado, 24 de janeiro de 2015

Um Postal de Miriam Manaia

            Caro Doutor, como tem passado este sol de Inverno  com temperaturas amenas e agradáveis?
       Nem imagina o quanto amei saber que se encontra de novo a viver junto de um vulcão adormecido. Passou tanto tempo desde o nosso último encontro e sei que nunca mais transmiti nada da minha parte, típico desta minha personalidade errante, bruxuleante e ondulante. Durante os últimos meses viajei sem cessar, corri mundo, fartei-me de viajar até cansar. Regresso agora de uma viagem ao sudoeste asiático onde, pela primeira vez, nadei com crocodilos, e, talvez por isso, tenha tido necessidade de lhe escrever com esta brevidade. É um impulso estranho nadar com animais de grande porte, rodeá-los sem que estes nos mordam ou apanhem, sempre com esta sensação imanente de "toca e foge". É preciso muito treino, evidentemente.
      Soube, por voz amiga, que o agora (Professor) Doutor tem tido contactos recentes com o mui amigo Janeiro Alves. Que bom seria ter a vossa companhia no recém-renovado Solar dos Manaias.
      Até breve na caixa dos correios,
                                                            com imensas saudades suas
Miriam Manaia

O Quarto

Quem te pôs a mão no ombro,
a faca que te atravessou o coração,
são feridas alheias, talvez algo que leste;
entretanto partiste

para lugares menos iluminados
e corações menos vulneráveis,
pode perguntar-se é o que fazes ainda aqui
se já cá não estás.

A hora havia de chegar em que
nos perderíamos um do outro.
E acabaríamos necessariamente assim,
mortos inventariando mortos.

Morrer, porém, não é fácil,
ficam sombras nem sequer as nossas,
e a nossa voz fala-nos
numa língua estrangeira.

Apaga a luz e vira-te para o outro lado
e acorda amanhã como novo,
barba impecavelmente feita,
o dia um sonho sólido onde a noite se limpa e se deita.

Manuel António Pina, in Como se Desenha uma Casa, Assírio & Alvim, 2011

Ilha

"Uma Ilha é apenas o topo de uma montanha"
Joseph Conrad