domingo, 21 de julho de 2013

Do Estio...

         Era Julho e à semelhança das cigarras ninguém dormia. O cabelo doirado das mulheres lembra-me agora a infância deitado ao sol sobre os barcos, um clarão de luz a incidir sobre a merenda, os cães a rondar a areia e um cheiro intenso de salitre com o estender das algas e sargaço a serpentear a orla. Não havia sono mas sim desenhos com giz sobre a lousa ou sobre a areia e os amigos que se sentavam em redor à volta da canícula, ansiando o toque e afago das mães que se tinham  retirado e ausentado por instantes para o recolher da faina e dos maridos.
Era verão e as cartas rondavam os adultos nas mesas das tabernas e esplanadas. As bicicletas encostadas, exauridas e expostas nas paredes das ruas vazias, os bichos a povoarem as ranhuras, o verde das ervas a irromper por entre frinchas e rachas nos muros para além da ferrugem nos raios das rodas em descanso. Os gelados compostos de gelo e de açúcar, as nódoas no peito das camisas, as unhas sujas e enfiadas na terra dos berlindes gastos e consumidos ou ainda o medo das sebes altas nos campos de espigas e das vinhas. Adormecemos em algumas ocasiões junto de girassóis inclinados, por vezes debaixo de chatas e de lanchas a servir de refúgio e esconderijo às tropelias cometidas, ilibando culpas de horas e brincadeiras intermináveis na praia do pescado ou ainda dos tesos mergulhos no mar de domingo sem digestão, com os avós ocupados com os labores das redes e resultados da bola.
        Dessas tardes soalheiras com a cabeça enfiada na areia, a lassidão e o suor dos corpos à beira-mar ganha-se consciência. Consciência dessa grata e feliz morada salina de luz e azul, uma casa vasta e farta onde podemos molhar sempre os pés e mãos do nosso desconforto da adulta idade ou da velhice. O estio é certo que findará um destes dias sem darmos conta mas é dele sempre este baloiço guardado e relembrado, o escorregão recordado de correrias eternas e os ponteiros do relógio que de tanta corda ficaram parados.”

Doravante o sol

Doravante o sol o céu o sal
o tempo a escoar pelas marés
voa um garajau como se ganhasse
às nuvens de passagem o vagar
caí refeito verticalmente
num tempo outro a restaurar
o nosso enredo reescrito
rodopio constante irrequieto
desejo conspirativo em movimento
a  harmonia secreta das espumas
o horizonte com linha a desvanecer
o brilho e o branco dos casarios
e o mar chão que nem um barco vislumbra
ali onde a cor da luz se agiganta.

Belarmino vs Linda Martini

-Após a banda sonora do Manuel Jorge Veloso, do poema do Alexandre O’Neill (Belarmino - Amigos Pensados”) e deste vosso tema, é caso para dizer que nunca um filme em Portugal gerou tanto entusiasmo e fulgor criativo. Qual é a vossa opinião sobre o filme enquanto expressão de um certo espelho lusitano?

-André: O filme é ainda hoje uma referência e à época foi uma pedrada no charco do cinema português. Está ali num limbo entre a ficção e o documentário que me agrada muito. É sem dúvida um espelho da época. Dá para ver toda a gente a olhar para o chão metido dentro das suas vidas e dos seus casacos. O Belarmino acaba por contrastar no meio daquilo tudo com aquele ar gingão e aquela pose de malandro.

Entrevista dos Linda Martini ao Boletim Cultural Fazendo nº 48(https://issuu.com/fazendofazendo) (29 de Outubro a 11 de Novembro de 2010).