domingo, 29 de março de 2015

Ontem escrito numa parede da cidade

Não me canso de dar flores a mim próprio.

Fado do Regresso

Voltei com a mesma fome…
Ai, como eu andara enganado!
A quem renega o seu fado
nem o Céu lhe sabe o nome.

Não achei o Paraíso,
e sei que tudo é pequeno.
Mas no teu rosto sereno
é cada ruga um sorriso.

Encontro as flores outra vez;
o sol perguntou por mim,
E foi sobre o meu jardim
que uma nuvem se desfez.

Na firme paz de quem ama,
acabei o meu desatino
Vejo os sonhos do menino
à roda da minha cama.

Adeus, ó ilhas desertas
velas à raiva do vento!
A cadeira em que me sento
é as minhas descobertas...

Nem mesmo o teu fumo quero,
Meu cachimbo de Xangai!
Agora, que já sou pai,
no meu filho é que me espero.

Oh sombra da minha sorte,
que traí com cem mulheres!
Podes vir quando quiseres,
Senhora da Boa Morte!

 in A Ilha de Sam Nunca, Atlantismo e Insularidade na poesia de António de Sousa, organização da Antologia de Natália Correia. (Faixa nº10 do disco “Mar Aberto” de Medeiros/Lucas)

“Que bom é partir, que triste é ficar.”

     Eram cinco da tarde neste início de Primavera, uma pessoa decide aventurar-se pelo interior adentro de um Teatro antigo. Escondido, escuto os sons que saem das colunas. Ao fundo no palco está um homem de cabelo e barba branca rodeado de músicos a disfarçar que tocam os seus instrumentos. Um outro homem de carapinha e bigode filma-os enquanto o cantor baloiça na cadeira como se fosse capitão de um barco agitado em pleno mar alto, rasgando a onda, cavando a vaga, agarrado ao leme, sem nunca o largar. Sente-se ali uma vaidade contida, inconfessável, gente que soube continuamente pertencer à ribalta, por muito que estime o silêncio e o recolhimento. É a segunda vez que presencio aquele cantor ao vivo, por certo naquele mesmo lugar. Os músicos repetem em playback as vezes que forem necessárias para filmar um videoclip daquela canção. O realizador solicita mais luz ao técnico e os músicos perderam já o travão da entrega emocional. Os jovens músicos cavalgam a encenação proposta pelo realizador do vídeo. Deito-me, entretanto, por terra. Não me contenho de tamanha agitação marítima e abandono por instantes a sala do teatro. Parto em direcção ao porto, ao lugar onde atracam os barcos e marinheiros. Parto à procura de outros homens que me devolvam esse olhar desprendido, uma mirada solta, um fitada que me leve, também eu, a querer partir. Há tempos conheci marinheiros que traziam esse ímpeto de errância, aventura, partida. Demorei alguns meses a esquecê-los. Homens que não conseguem ficar muito tempo parados no mesmo sítio. É desse desejo inconfessável de partida que partilhei sob a forma de palavras e interrogação horas depois à saída do concerto. Não sei se algum dia chegarei a perceber o porquê de tanta inquietação, somente a certeza de que é essa ideia de beleza que nos move, que produz este impulso de mudança, alterar, enfim, partir. Enquanto aquela voz  ecoa dentro do mais fundo da leveza e da esperança:“Que bom é partir, que triste é ficar"