Ninguém acredita no que está
neste momento a ver pois contra todas as probabilidades ali temos o incrível
Doutor Mara, numa sexta-feira à noite, em discoteca bem conceituada, por sinal e, em plena
coluna no centro da pista de dança a agitar-se desabridamente, feito exímio e
excêntrico dançarino, com uma camisa às flores (julgamos ser hortênsias), encharcado
em água e suor, sendo que este se encontra permanentemente a ser agraciado com
baldes de cerveja que, ele simpática e educadamente, vai sucessivamente recusando.
De qualquer modo, convém dizer que tem sido difícil para nós obtermos o seu
depoimento e aproximarmo-nos até bem perto dele. Vamos, certamente, fazer a
dita charla impossível, o que pedimos aos nossos leitores a máxima desculpa por
algum baloiço e oscilação.
DM: Doutor Mara, será que podemos ter a nossa charla habitual consigo?
Doutor Mara: Neste momento, não posso. Vocês não vêem que me
encontro em pleno acto dançante. Que chatice…
DM: Sim, já reparámos. Você está frenético…está tudo em ordem?
Doutor Mara: Sim, à parte que neste momento padeço de Tarantismo
súbito.
DM: Tarantismo súbito?
Doutor Mara: É um impulso frenético de dançar e a consequente
incapacidade de suster e estancar os movimentos da dança. Eu estou,
definitivamente, infatigável… mesmo que queira, não consigo, já houve gente
internada por este dito achaque contemporâneo e também houve muitas pessoas que
emagreceram muitos quilos depois disto. É também uma coisa interna, uma busca
incessante da nossa verdade interior e da verdade colectiva na forma como os
outros nos vêem. Posso garantir-vos, que durante o período da minha juventude,
perdi uma ou outra namorada devido a este meu estado súbito de
tarantismo. Peço-vos imensa desculpa, mas necessito continuar a dançar...o
tarantismo quando chega nem sempre é para todos e...tenho que aproveitar.
DM: Mas, doutor, isso parece-nos muito grave, muito grave mesmo…não
consegue mesmo parar de dançar?
Doutor Mara: É verdade…isto não tem explicação segundo os médicos
nem a ciência moderna. Os músicos dizem que isto acontece quando um disco
jóquei actual passa mais de três músicas seguidas com grande nível, o que é
raro nos dias que correm. Por outro lado, quanto mais danço mais vontade tenho
de fazer amor, desculpem, quando mais danço mais vontade tenho de fazer a
revolução, desculpem outra vez, quanto mais danço mais vontade tenho de
dançar…assim é que é…será? Tirei a noite para dançar…não sei, portanto,
quando é que isto irá parar.
DM: Mas, Doutor, você é bom é a escrever, a produzir obras de grande
valor estético, você está ao nível das grandes celebridades da literatura.
Doutor Mara: Isso é o que vocês críticos dizem… e como vos agradeço,
tenho uma imensa dívida para convosco ao me ajudarem a pagar as contas da electricidade,
da água e do gás. No entanto, escrever bem, como diria o velho Freud, é ser
capaz de contar histórias, isto é, de se interessar pelo homem, pelo seu
destino individual e colectivo. Vejam estes jovens que quase dançam aqui à
minha volta, cada um traz consigo uma estória mas são muito poucos os que se
interessam por eles…quem escreve sobre eles? A antiga sociedade de produtores
só lhes consegue arranjar lugar como consumidores e é talvez por isso que eles
ficam neste estado letárgico, ludibriando a incerteza do tempo em que vivem e
atirando-os para a anomalia de não saber o que fazer com o mundo que têm pela
frente. Alguns deles não dançam pois estão mais interessados em transmitir
pequenos esgares e olhares furtivos ao mesmo tempo que tentam ser retribuídos
nessa ânsia de serem desejados. E, por favor, se não se importam, vão-me desculpar, mas tenho que
continuar a dançar...isto é uma verdadeira terapia.
DM: Doutor, pedimos desculpa pelo incómodo, estamos eternamente
agradecido por esta charla impossível. Esperemos, entretanto, que consiga
travar esse baloiço bailador em que está metido. E que não seja preciso camisas-de-força
para tirá-lo daí. Até um dia destes.