sexta-feira, 1 de março de 2013

Anarquistas

          Miguel M. é meu amigo por natureza e é anarquista por profissão. Por mais brilharetes que as chefias possam fazer, com ele nunca lucram nada. Se, por exemplo, chove, ele treme por um bronzeador que o ponha sãozinho que um pêro e maduro como uma amora. Está céu aberto e ei-lo a barafustar que as culturas vão ao ar, que os pássaros não encontram charco onde molhem o bico, que os peixinhos vermelhos do tanque estão aqui a afogar-se no lodo. Anarquista é o que ele diz ser. Por mim, chamo-lhe espírito de contradição nas horas boas e varrido-de-todo quando vou ficando sem paciência para o aturar. É claro que ele vai-se safando com desculpas de mau pagador e cita parábolas e tiradas filosóficas que, no fim, acabam em nada. Mas vai falando, o que não já não é nada mau. O que é mau é quando ele se arma em defensor de causa alheia e atira para cá fora umas tantas bacoradas que vê-se logo que não joga com os trunfos todos.
Pois é.
       Aqui há anos andava Miguel M. de manga arregaçada e língua em riste, desbaratando tudo e todos os que entendiam que a agricultura dos Açores ou levava uma reviravolta ou os curraizinhos de duas ou três vacas não chegariam para pagar o leite que o vitelinho – nené  ia chupar nas primeiras duas semanas de vida. “Uns comunas é o que eles são !” afogava-se o Miguel , no seu constante alarido contra o emparcelamento de terrenos que então se preconizava.“Uns grandessíssimos e alternadíssimos comunas, estes gajos!”.
         Hoje, Miguel M. já não fala assim. Usa gravata, faz a barba e joga mais rasteiro. Hoje Miguel M. é um fanático pela CEE, já vai ao futebol chamar filho-de-puta ao árbitro e entende, muito diplomaticamente, que o tal “emparcelamento de terrenos” há anos recomendado, é um maná que vem dos céus, é a chuva que vem saciar a terra árida, é o sol que vem dourar os trigais.
Lírico, anarquista, maluco e azarento, este Miguel. Os agricultores que nunca vão às pescas, paradoxalmente querem ensinar-lhe com quantos paus se faz uma canoa. Logo agora…


José Daniel MacideMarço de 1985, in Crónicas da Portugália