quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

...

sabes
conta-se que depois do inverno
a memória
treme nos interiores das chuvas caídas
alguns candeeiros deslizam para os mistérios de uma sombra
e deixam algumas pegadas
para quem sabe que nascer ou morrer agora
passa ao lado das ponderações gerais
ou dos decretos cósmicos

diz-se ainda
que alguns homens partem por esses vestígios de liquidez
cantam dentro de um corpo invertido e desfocado
ao longe
onde sentado à soleira da casa de alguém os vejo passar
sem calendário que não seja obrigatório
ou as calças mais banais
e burocráticas

Sei lá – daqui parece que caminham
sobre as ruas fluídas
como se caminhassem por cima de uma miragem
interessa-lhes pouco o que de facto nada interessa
como ajoelharem-se
encostarem o ouvido à chuva por desaparecer
procurarem naquele reflexo ingrato uma pulsação
onde uma abelha pouse e de lá traga
o princípio de outra flor

enfim
é isto que escrevo sussurradamente
sentado em sítios que não me pertencem
sabendo
que se não me levantar destas estações sensíveis
toda a minha irrefutável e inútil vida será
ver os outros partir

Leonardo, in Âmbula, Companhia das Ilhas, 2015.