domingo, 8 de abril de 2018

Ana Vieira: Da Ausência ao Deslocamento do Olhar

Livro da Exposição Interior/Exterior
(Fotografia de Carlos Olyveira)
                 A artista plástica Ana Vieira nasceu na cidade de Coimbra em 1940, viveu nos Açores, em São Miguel, até aos 18 anos de idade. Frequentou a Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, terminando o curso de Pintura em 1965. Foi casada com o pintor Eduardo Nery. Faleceu em Fevereiro de 2016, em Lisboa. Há dois dias atrás, Catarina Mourão apresentou, na Galeria Arco 8, o seu documentário “Pelas Sombras”, e, por isso conviria lembrar aqui aquilo que Ana Vieira respondeu numa entrevista a Hans Ulrich Orbist, a propósito da artista madeirense: “A primeira vez que vi uma exposição de Lourdes de Castro, foi em Lisboa, e fiquei não só encantada, como expectante, sem conseguir perceber bem porquê. Uns anos depois descobri que era o conceito de “ausência”, tão detectável nas “sombras” de L. de C. Em relação ao Luís Noronha da Costa foi a liberdade de ensaiar, de experimentar, assim como de propor novas percepções da arte. O Noronha da Costa tinha tirado o curso de arquitectura e talvez, ou certamente por isso, estava muito ligado ao espaço.” Desta feita, registamos aqui as afinidades da artista Ana Vieira: Lourdes Castro, Luís Noronha da Costa e, claro, Pistoletto…essa ideia do expectador poder ou não entrar na obra de arte.

Sobre a escolha das obras de Ana Vieira

Falar sobre estes dois objectos artísticos da exposição Interior/exterior é tentar (re) capturar a atenção de uma ausência, o fluxo do invisível, essa improvável permuta entre a obra do artista e o olhar atento do expectador. As obras por mim escolhidas são, por isso, uma caixa com o vazio da garrafa e uma poltrona da artista plástica Ana Vieira. O que dizer depois do lastro desse primeiro olhar?
A escolha das obras da Ana Vieira pretendem assim dar conta desse olhar que não se encontra, que também se perdeu, que se encontra ausente. Como exprimir o deslumbramento desse olhar? E, claro, depois disso visualizar uma perspectiva, tornar legível o sentir no deslocamento de um olhar que um expectador sente com a intersubjectividade do seu corpo. Se possível, com o corpo todo. A obra de Ana Vieira não é para ver mas sim para espreitar.
 A obra de uma caixa com o invólucro/vazio da garrafa remete para uma ideia de ausência, desse jogo da invisibilidade/visibilidade a que o objecto está sujeito e da interrogação previsível de quem assiste, isto é, ao questionamento do espectador. A garrafa não se encontra presente, apenas a sua forma e por isso se torna possível imaginar que esta possa ter sido usada, que esta possa ser fruto de uma vivência, a reticulação duma qualquer marca, pegada, digamos, que ficou por esclarecer ou desvendar. Do mesmo modo que uma poltrona exposta nos sugere o questionamento e envia para uma invisibilidade física que faz pensar sobre o usufruto que alguém lhe possa ter dado ou ter sido usada em casa por alguém ou dar lugar para alguém se sentar. Quantas pessoas nela se terão sentado? Que memória guarda aquela poltrona?
Como característica essencial do trabalho plástico de Ana Vieira: a criação de espaços e de ambientes, a obra aberta. O expectador participa enquanto “espião” de imagens e lugares, alguém que pressente o eco, esse sussurro do momento em que algo lhe tocou os sentidos. O que é possível dizer ou acrescentar ao que não sabemos, ao vazio que as representações nos sugerem? Mais importante do que as sombras, ficam as tramas, o véu, o vácuo, os materiais que envolvem os objectos, o que não é mostrável, esse lugar inacessível. Pode ser assim, melhor, existir um diálogo com a obra de Ana Vieira, num jogo de ocultação/visibilidade, investindo no questionamento da arte.
Curiosamente, apraz-me concluir que a obra de Ana Vieira é-me muito apetecível pelo seu lado da representação, daquilo que é encenado, intuído, evidenciado por esse jogo de espelhos, tal como as sombras ou transparências... que evoca tantas vezes  a arte teatral, que faz-nos ver o seu trabalho de fora, com uma consciência em off. Sem dúvida, uma artista com pergaminhos, que soube explorar esse lado subtil da arte, delicada nos gestos e honesta na sua busca e percurso singular, ainda a sua concepção de uma arte multidisciplinar, essencialmente na forma como esta se percepciona e nos coloca perante os seus objectos artísticos.


*Texto lido no dia 6 de Abril, na exposição Interior/Exterior, no Núcleo de Santa Bárbara, Museu Carlos Machado.