Estimado Janeiro
Alves,
Escrevo para
lhe contar que tenho vivido dias intensos e felizes no Solar dos Manaias muito embora não
deixe de pensar que a sua carta é reveladora de tempos sombrios e tenebrosos deste
presente que nos encontramos a viver. A seu tempo tenciono contar ao mundo os
planos de Vivaldo Manaia – tremo só de pensar nas revelações - e gostaria muito
que Janeiro Alves se deslocasse até este pequeno paraíso e desfrutasse connosco
das muitas maravilhas a que a vida nos tem vindo a presentear e surpreender. Começo por
falar-lhe desta ilha que, para lá da descoberta diária de tantos recantos
naturais que me levam do fascínio ao arrepio, quase sobrenatural, deixo-me
encantar por estas ruas do seu centro histórico, ainda que muito pouco habitado com casas degradadas. Por vezes e,
ainda resquícios da minha boémia estudantil, desapareço durante alguns dias e
nem a a minha mais recente amiga sabe do meu paradeiro. Aproveito, no entanto, para
referir que tenho usufruído e fruído com alegria estes dias com a mais
intelectual e filósofa dos Manaias: a Miriam. Para minha surpresa, esta encontra-se a
escrever um ensaio filosófico intitulado “Prolegómenos de Querença e da
Pertença Tardia” ao mesmo tempo que se deixa acompanhar por um caderno de
apontamentos onde esboça o seu próximo romance, que conta para já com o título
provisório: “Areópagos de Bruma”. São também muito invulgares os serões literários que esta organiza em torno de um
livro, de um poeta, de um filósofo, ou até mesmo de um dramaturgo. A casa e a
mesa da sala de jantar enche-se de amigos e literatos para conversar sobre as obras
em questão e degustar as delícias gastronómicas e etílicas que cada conviva
transporta para o serão. Na última sessão, acabei por ler um poema de Óscar
Manaia, o mais desbragado, hábil e viril dos Manos Manaia, pressentindo na minha anfitriã uma
luminosidade e súbita humidade nos seus olhos de cor de amêndoa. O poema tinha
somente estes versos: “Agora que já não
te visito nem te avisto/ Tão pouco te enfrento ou te afago/ Fico longas horas
assustado/ Ao teu convite destemido/ Respondo de modo desgostoso e cansado.” De
qualquer modo, estou deveras impressionado pela cultura e classe de Miriam
Manaia, fascinado sobretudo pela sua pulsão epistemofílica, o que me obriga por
vezes a dar o meu melhor. Neste último sábado, a Miriam e eu, saímos bem cedo
pela manhã para assistir ao nascer do dia assim que caía uma chuva medieval com
nuvens negras que carregavam água sobre nós e eis que, subitamente, ficamos os
dois especados no centro da rua do Colégio a absorver aquele instante, num
misto de céu azul a despontar à espera que as nuvens negras passassem. Miriam
tem no entanto consciência que quando eu me afastar do solar ela irá sentir
saudades das noites e dos serões passados em conjunto. Por isso, decidi
prolongar a minha estadia junto desta. Infelizmente, Miriam não partilha do meu
mirífico entusiasmo à volta da rua do Colégio, desconfiando inclusive da sua
genuinidade. Afirma mesmo que exagero e que aquilo que digo é digno de um jovem
poeta, excêntrico e com poucos livros publicados.
O amigo
Janeiro Alves que me perdoe estas confidências mas como deve compreender estava
a precisar de desabafar com alguém para lá do clã Manaia, por outro lado entrei numa fase da minha vida em que
já não tenho nada a esconder ou mesmo a perder.
Com a minha
profunda amizade,
Mara, Doutor.