segunda-feira, 30 de março de 2015

Ilha de Sam Nunca

daqui:www.culturacores.azores
Era a dor de pensar que me impelia
(Meu rumo-aonde fosse Perdoar),
mas achei-me sem leme, à revelia
da lua de rezar.

Tremi de naufragar nesta verdade pobre,
e, entre vidas passando como raios,
contentei-me de ser o que descobre
sonhos-avós com piratas malaios.

Cheguei, por fim. Mal desperto da viagem,
acendi o cachimbo e empunhei a lira,
para compor um canto à minha imagem.
Entretanto, a praia fugira.

in A Ilha de Sam Nunca, Atlantismo e Insularidade na poesia de António de Sousa, organização da Antologia de Natália Correia

Poema de Bordo

A luz nova deriva do vento e do sol
afastada a sombra concedo à guardiã da fortaleza
o móvel reflexo do celeste céu primaveril
enquanto espero a fresca seiva da manhã
na aproximação de um outro corpo que não o meu
a comoção das velas e dos panos remendados
o lustre dos fios e a extensão dos cabos 
o fim da pequena morte e do sorriso refeito
as raivas naquele pontão silenciadas 
e as dores da desistência consumada 
para longe outro grito comigo levarei. 

O Grande Mergulho de António de Sousa

No fundo do mar
lá no fundo, no fundo
dum mar que não é 
nem do céu nem do mundo;
as velhas areias,
entre alguns feixes,
conchinhas, moluscos,
luzentes escamas 
de meigas sereias 
e rápidas flamas 
do arco-íris dos peixes, 
a chave lá está...

-Quem desce a buscá-la?
Cem anos, mil anos,
alguém que tecia
a mística rede
com sonhos humanos,
naufrágios e sede,
martírios e crimes,
geométricos gritos
e poemas sublimes,
cordinhas de viola
e nus de infinitos,
num pronto apanhou-a!

Se chega cá acima:
ao Cabo ou ao Pólo,
ao Havre ou a Goa,
ou mesmo a Lisboa!...

Mas, longa, a subida 
tão longa, a demora
a conta sabida:
A hora por hora 
é sempre uma vida...

in A Ilha de Sam Nunca, Atlantismo e Insularidade na poesia de António de Sousa, organização da Antologia de Natália Correia