(A propósito de “há-de flutuar uma
cidade no crepúsculo da vida” – de Leonardo
Sousa, Letras
Lavadas edições, 2013)
Houve um tempo que foi simples, demasiado
simples até, escrever ou editar um livro em Portugal. Trabalho árduo será
publicar um livro que contenha uma determinada identidade e que possua dentro de
si um sentido de comunidade e diversas e intrincadas conexões estéticas, isto
é, que goteje lastro e contamine tudo à sua volta num universo visível de
centelha para lá de abarcar dentro de si um combinado sensível de partilha e
inclusão. Impossível? Pode ser que não!
O
livro “há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida”, do jovem micaelense,
Leonardo Sousa, é uma primeira obra que reúne dentro de si uma galáxia afectiva
de diferentes autores, sendo, sobretudo, um livro de um autor com força e
singularidade que editou o seu livro iniciático e que não é, certamente, mais
um a povoar as estantes das livrarias ou das bibliotecas. Escrever um livro é,
portanto, uma tarefa arriscada e, na maioria das vezes, um feito inglório,
ainda que nos convençam do contrário. O autor que tem uma aguda consciência do
exercício da escrita e da transpiração que esta requer, escreve na página 41
deste livro em forma de aviso: “fazer um
verso é entregar a alma e mutilá-la muitas vezes”. Alma mutilada, portanto.
Daí que este livro com o curioso título “há-de flutuar uma cidade no crepúsculo
da vida”, para além de ser a primeira súmula de versos e contos do autor, é
também o anúncio da sua afirmação enquanto escritor e literato, a sua assunção
de vida literária e sinónimo de revelação e ousadia lírica como podemos ler em
“Nota Informativa I”: “não há utilidade
em conhecer palavras / tua boca move-se com a lentidão das portas à noite /ou com
a monotonia do lume que te passeia nos olhos/ continuas a procurar/ as sílabas
que te levem ao derreter dos versos/ ou ao presságio da saliva dos espelhos”.
Escrever ou procurar as sílabas que te
levem ao derreter dos versos passou, portanto, a fazer parte da sua vida e
este enfrentamento é digno de estima, elogio e admiração. Seria, no entanto,
bom esclarecer que muito embora os encómios naturais a que esta primeira obra possa
estar sujeita convém não embandeirar em arco ou desperdiçar loas de forma fácil
e corriqueira pois acreditamos que ainda há muito caminho por fazer e desbravar.
O livro convoca a poesia, a prosa e o conto sendo neste último registo que o
autor arrisca abrir o jogo do que está para vir: “- rasurem a minha vida, quero
escrever outra e medito, eis as minhas pernas um tanque e cicatrizes (…)”. O
escritor está consciente que este é um livro de homenagem aos seus autores
dilectos e que por ali ecoam vozes de leituras, lampejos e demais amores-perfeitos.
Ele começa desta forma um diálogo de gigantes e comprova a presença dos autores
eleitos em muitas das páginas do seu livro, o que convenhamos não há mal nenhum
nisso e é até sinónimo de leitura e gratidão perante a obra de outros. Não será
muito difícil encontrar aqui e ali ecos e ressonâncias de Paula Sousa Lima, Al
Berto e o seu “Horto de Incêndio”, ou ainda marcas de intertextualidade de
leituras mais recentes dos romances e crónicas de António Lobo Antunes, para
além de toda a obra do seu poeta de eleição: Herberto Helder.
A
fasquia que Leonardo Sousa colocou perante si está, portanto, muito elevada e,
só por isso, devíamos neste momento elogiar a sua ousadia e coragem lírica.