domingo, 6 de abril de 2014

Soneto Branco

Já ao fechar-se o talismã promete
fundo de areia à água azul dos sons
ao nome do navio que a sobrenada
tal como à estrela animal de seis pontas
lembrando a flor e o cheiro a maresia
recém-casados por amor de abrir
o peito à colheita da solidão
que as mais das vezes se chama poesia
depois quebra-se o encanto dão-se a ler
linhas sem feitiço corpos reféns
coisas da vida que aí se lhes rouba
no sentido que dão sem querer ter
ressurreições que trazem à lembrança
mortes que já mais houveram lugar

João Paulo Esteves da Silva

FAZENDO DAS ILHAS


    O Fazendo, jornal que aqui o Doutor adoraria ter fundado aos 20 anos, tem a edição nº91 do mês de Abril espalhada pelos sítios do costume, mas só no arquipélago açoriano, evidentemente. Há artigos e desenhos para todos os gostos e feitios. O design continua fresco e arejado, é da etiqueta de Ambas as Duas, e desta vez a capa pertence a Geni Jorge e João Bora. O núcleo editorial, a cabo de Tomás Melo e da Aurora Ribeiro, assegura que a edição chega a cinco ilhas: Faial, Pico, Terceira, São Miguel e Santa Maria. Uma aventura carregada de "peixe antigo". Esta nova edição do Fazendo mantém, portanto, o sucesso do passatempo “Rebus”, um quebra-cabeças extraordinário para qualquer sala de professores das ilhas em questão. Uma curiosidade: as ilustrações das últimas páginas centrais são do Les Gallagher. Já se sabia, claro.E leiam, se quiserem, aqui:http://fazendofazendo.blogspot.pt/

Revelação e Ousadia Lírica


(A propósito de “há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida” – de Leonardo Sousa, Letras Lavadas edições, 2013)

Houve um tempo que foi simples, demasiado simples até, escrever ou editar um livro em Portugal. Trabalho árduo será publicar um livro que contenha uma determinada identidade e que possua dentro de si um sentido de comunidade e diversas e intrincadas conexões estéticas, isto é, que goteje lastro e contamine tudo à sua volta num universo visível de centelha para lá de abarcar dentro de si um combinado sensível de partilha e inclusão. Impossível? Pode ser que não!
          O livro “há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida”, do jovem micaelense, Leonardo Sousa, é uma primeira obra que reúne dentro de si uma galáxia afectiva de diferentes autores, sendo, sobretudo, um livro de um autor com força e singularidade que editou o seu livro iniciático e que não é, certamente, mais um a povoar as estantes das livrarias ou das bibliotecas. Escrever um livro é, portanto, uma tarefa arriscada e, na maioria das vezes, um feito inglório, ainda que nos convençam do contrário. O autor que tem uma aguda consciência do exercício da escrita e da transpiração que esta requer, escreve na página 41 deste livro em forma de aviso: “fazer um verso é entregar a alma e mutilá-la muitas vezes”. Alma mutilada, portanto. Daí que este livro com o curioso título “há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida”, para além de ser a primeira súmula de versos e contos do autor, é também o anúncio da sua afirmação enquanto escritor e literato, a sua assunção de vida literária e sinónimo de revelação e ousadia lírica como podemos ler em “Nota Informativa I”: “não há utilidade em conhecer palavras / tua boca move-se com a lentidão das portas à noite /ou com a monotonia do lume que te passeia nos olhos/ continuas a procurar/ as sílabas que te levem ao derreter dos versos/ ou ao presságio da saliva dos espelhos”. Escrever ou procurar as sílabas que te levem ao derreter dos versos passou, portanto, a fazer parte da sua vida e este enfrentamento é digno de estima, elogio e admiração. Seria, no entanto, bom esclarecer que muito embora os encómios naturais a que esta primeira obra possa estar sujeita convém não embandeirar em arco ou desperdiçar loas de forma fácil e corriqueira pois acreditamos que ainda há muito caminho por fazer e desbravar. O livro convoca a poesia, a prosa e o conto sendo neste último registo que o autor arrisca abrir o jogo do que está para vir: “- rasurem a minha vida, quero escrever outra e medito, eis as minhas pernas um tanque e cicatrizes (…)”. O escritor está consciente que este é um livro de homenagem aos seus autores dilectos e que por ali ecoam vozes de leituras, lampejos e demais amores-perfeitos. Ele começa desta forma um diálogo de gigantes e comprova a presença dos autores eleitos em muitas das páginas do seu livro, o que convenhamos não há mal nenhum nisso e é até sinónimo de leitura e gratidão perante a obra de outros. Não será muito difícil encontrar aqui e ali ecos e ressonâncias de Paula Sousa Lima, Al Berto e o seu “Horto de Incêndio”, ou ainda marcas de intertextualidade de leituras mais recentes dos romances e crónicas de António Lobo Antunes, para além de toda a obra do seu poeta de eleição: Herberto Helder.
          A fasquia que Leonardo Sousa colocou perante si está, portanto, muito elevada e, só por isso, devíamos neste momento elogiar a sua ousadia e coragem lírica.

Energia e Ética

Sei isto: a minha energia está canalizada
Para a palavra fazer, gosto da ideia da construção
E o que dela existe nos movimentos normais.
Agrada-me a palavra engenharia e o que ela
Representa: não saias de um sítio sem deixares algo
Atrás de ti. Dirijo-me apenas às coisas que me excitam
Positivamente e me levam a fazer outras coisas, dirijo-me
Às pessoas de que gosto, nunca às de que não gosto;
Sempre me pareceu insensato que se pare,
Nem que por um momento, de admirar, há
Sempre actos e coisas que nos ajudam
neste cálculo infernal da distância entre o dia de hoje
e a nossa morte. E qualquer pessoa dar um passo que seja
em direcção ao que não aprecia, para insultar, ou derrubar,
parece-me brutal perda de tempo, uma falha grave
no órgão de admirar o mundo
(deves combater uma ou duas vezes na vida,
se combateres duzentas vezes
é porque os combates são fracos).
Não sei pois como viver. O que li e vi
Serve-me apenas para ser mais lúcido, não
Para ser melhor pessoa. Adquiri esta regra (ou nasci com ela):
- e é talvez uma moral -
mover-me apenas em direcção ao que gosto.
Se o prédio alto, escuro, feio
me impede de ver o sol, não fico a insultá-lo, não
moverei um dedo para o deitar abaixo:
contorno sim os edifícios necessários
até chegar ao espaço de onde possa receber aquilo que
quero. Se chegar lá de noite, montarei acampamento.


Gonçalo M. Tavares- 1. Edição: Relógio D’Água, 2004